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sábado, 5 de março de 2011

Estripulias em Tripoli

Última atualização: 5/03/2011 — by Carlos U. Pozzobon

O grau com que certos eventos dependem de acontecimentos ligados à tecnologia tem sido muito pouco discutido e não ultrapassam a barreira das especulações.

Durante muito tempo, no Ocidente, os intelectuais se dedicaram a combater o que se chamava de ideologia do progresso, uma ideia hegeliana que passou para o marxismo, depois para o fascismo, e por fim abortou em intelectuais ilustrados como Bernard James (The Death of Progress: Alfred Knopf, 1973), Arnold Toynbee (Surviving the Future: Oxford University Press, 1971), e Lewis Mumford (The Myth of the Machine: Harcourt Brace Janovich, Inc., 1970). Todos levantavam sérias dúvidas sobre se a tecnologia garantiria uma melhor qualidade de vida para o homem no futuro, ou se seria o prenúncio de um caos. Tendo em vista que a guerra fria e a consequente ameaça nuclear eram o que mais aterrorizava na época, naturalmente que a tendência intelectual ao pessimismo parecia irresistível.


Tropelias

Agora que o Oriente Médio (e o norte da África) estão em permanente ebulição, as resistências ao pessimismo tecnológico parecem ter dado lugar ao otimismo exagerado: foi mesmo a Internet e suas redes sociais, juntamente com os celulares e os satélites que serviram de estopim para um levante geral que parece não se deter apenas nos povos de língua árabe?

Qual a contribuição ‘inconsciente’ que um presidente chamado Barack Hussein Obama teria dado a esta causa, sabendo-se que logo que tomou posse foi direto a Istambul discursar orgulhoso de ter crescido em uma família muçulmana? Acaso esse gesto não teria sido como jogar um balde d’água na maledicência árabe contra os EUA?

O que mais poderia preparar a reação das massas tiranizadas durante décadas por satrapias de ditadores, enquanto o modo de vida ocidental penetrava descontroladamente em seu cotidiano, através de novos objetos de consumo, ao mesmo tempo em que testemunhavam as espetaculares construções e edifícios de seus vizinhos afortunados de Abu Dabi, Riad e Dubai?

Não sabemos exatamente o peso de cada avanço tecnológico nas futuras exigências de um povo porque parece não existir sincronia entre o progresso e as mudanças comportamentais. Sabemos apenas que o progresso antecede essas mudanças, mas não sabemos quando e o que acontecerá.

Considere as mudanças comportamentais no Ocidente provocadas pela tecnologia. O sociólogo norte-americano Daniel Bell, falecido recentemente, escreveu um artigo sobre a geração de Woodstock. Nesse artigo, Bell refletiu sobre a revolução do comportamento sexual, a disseminação do uso de drogas, os efeitos de um novo hedonismo – que levaria a sociedade americana para o consumismo, e novas formas na relação entre pais e filhos, homens e mulheres, tudo em decorrência das novas tecnologias que se disseminavam em bens de consumo, e que permitiam um novo estilo de vida. Isso de fato vem ocorrendo em doses cavalares, especialmente depois do advento da Internet.

Embora tenha sido sobrevalorizada, a Internet de fato foi capaz de retirar uma comunidade do seu isolamento, de forma barata e ampla. Essa passagem do universo paroquial para o cosmopolita, em qualquer canto do mundo conectado, significa acima de tudo a explosão – pela primeira vez simultânea – de um sentimento de insatisfação entre as sociedades atrasadas, vis-à-vis as sociedades engajadas no desenvolvimento tecnológico.

Como não existe um descontentômetro que possa medir o grau de frustração de uma geração, concluímos que os levantes no Oriente Médio e Norte da África comprovam que não é mais possível manter populações subjugadas por oligarquias, cujas políticas essencialmente levam a frear o desenvolvimento em detrimento do empreendedorismo, a não investir em conhecimento, e a não sair do mesmo círculo vicioso de estagnação e exclusão social da maioria.

O mundo árabe corre o risco do retrocesso se não aparecerem elites intelectuais capazes de enfrentar as propostas de desenvolvimento baseadas no aumento da estatização, e sequestrar o entusiasmo da nova geração com promessas mirabolantes de um estado onipotente e paternalista.

No século XIX, alguns escritores chamavam as limitações da cultura de “síntese dos hábitos cognatos”. Este eufemismo significava que a cultura criava sua própria recursividade de procedimentos, alavancando sempre os mesmos tipos de reações para as mais diferentes crises, até que novos valores, incorporados por decantação de influências externas pudessem subverter o equilíbrio existente, com a introdução de novas ideias.


Sincretismo

Para saber até que ponto os países de fala árabe irão se beneficiar do “espírito da época” em que vivemos seria necessário avaliar a influência que os países da orla do pacífico asiático exercem sobre eles. Apesar de estarem próximos da Europa, o exemplo vem da Ásia, porque é no Oriente onde são mais evidentes os exemplos de transformação de economias pobres e atrasadas em espetacular desenvolvimento econômico, humano e social em um curto espaço de tempo, ao contrário da Europa, onde tudo evoluiu com lentidão e ziguezagues.

Mas que direções devem tomar os povos de fala árabe em um ambiente de confusão intelectual, ausência de organização política e rarefeitas lideranças regionais? Tudo indica que se trata de um processo de libertação empírico, em que os avanços deverão ser feitos no processo de organização e luta. E, nesse caso, em algum momento a unidade das ruas dará lugar à confrontação de interesses divergentes e às inevitáveis represálias sectárias. Mas é o momento para o aparecimento de uma nova entidade pan-árabe, firmemente comprometida com a democracia, os direitos humanos, a liberdade de opinião, e todo o rosário de ensinamentos do Ocidente.

Qualquer que seja o futuro desses países, a verdade é que eles deverão passar por um novo sincretismo. E, por mais pessimistas que sejamos, duvido que eles recuem para um regime tão opressivo quanto o iraniano.

Creio que podemos dizer como desabafo que o pior exemplo para os países de fala árabe é, nesse momento, repetir o que aconteceu no Brasil em 1988, onde o conto do vigário da “democracia sem adjetivos” terminou em um sistema de falsa democracia e de evidente desordem institucional vinte anos depois.

Quando as estripulias da mudança de poder tiverem acabado, veremos se do deserto será capaz de brotar um novo espírito que não seja a velha repetição do populismo e clientelismo, do onipresente estatismo e da recorrente violência banal do terrorismo. Alea jacta est.

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