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quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

A corrupção sistêmica

Carlos U Pozzobon

Por todos os lados se fala na corrupção. De repente, o Brasil descobre que a praga que infesta a Nação, desde o seu descobrimento, adquiriu uma proliferação tal que ninguém mais se sente confortável. A coleção de disparates sobre as causas da corrupção atinge proporções de festival de besteiras. Alguns praguejadores culpam o capitalismo, outros a ambição desmedida dos políticos, e há quem ache a corrupção uma inevitabilidade do gênio brasileiro.

Quando se analisa a sociedade, verificamos que existem espaços de troca em que a corrupção não tem vez: por exemplo, é impossível haver corrupção entre o comprador que compra para uso próprio e o vendedor proprietário. Portanto, uma sociedade de produtores e consumidores diretos não teria corrupção, isto é, duas pessoas que transacionam diretamente não têm como estabelecer um preço artificial.

Precisamos entender que para existir corrupção se impõe uma questão fundamental: entre aquilo que se compra e vende deve haver um representante, caso contrário, a corrupção inexiste. O representante pode ser um intermediário nas relações comerciais no mundo privado, que para isso toma todos os cuidados e auditagens necessárias a sua evitação, como pode ser o representante dos poderes públicos, que trabalham com o capital alheio, ou o chamado dinheiro público. Outra questão que favorece a corrupção é ambiental: ela é tanto maior quanto maior a burocracia de uma sociedade, cujas empresas têm seu gerenciamento forçado pelas normas do sistema político.

A corrupção pode, portanto, funcionar tanto no atacado como no varejo. No atacado, com o dinheiro público através de representantes envolvidos com grandes contratos: isso se denomina patrimonialismo. No varejo, pela ampliação da burocracia criada por leis e portarias que exigem mil coisas das empresas e indivíduos.

Tal não acontece em outras instâncias, como entre a empresa e o consumidor. Nas empresas que produzem bens de consumo de massa, a maximização do lucro é um fato que por si só reprime a corrupção. O lucro torna-se o próprio fator de vigilância e pressão sobre quaisquer arranjos que impliquem em sobrepreço. Enquanto o consumidor comprar com o preço mínimo, e enquanto a competição for um fato consumado a forçar os preços para baixo, a corrupção estará afastada, a menos que seja uma empresa suicida. O cálculo capitalista não deixa espaço para a corrupção. Porém, quando a relação capitalista migra para a esfera empresa-governo, os paradigmas mudam completamente.

Toda a empresa cujo lucro provém de escolhas, indicações, relacionamentos, contatos, conchavos, aparelhamentos, partidos políticos, organizações intermediárias, favores, parentelas, é uma empresa onde a suspeição de corrupção cresce com a conjuntura histórico-social.


Gerenciamento para o lucro e gerenciamento burocrático

Dois estilos de gerenciamento se impõem na conduta ética da sociedade: o gerenciamento para o lucro e o gerenciamento burocrático. Nos dias atuais, o gerenciamento para o lucro pressupõe um tipo de capitalismo minoritário: aquele da empresa com o mínimo de obrigações para com o aparelho governamental, além de um sistema tributário simples, direto e quase sem custos.

No gerenciamento burocrático, as coisas tomam dimensões que vão de um crescendo baseado em exigências governamentais, até a interferência direta. Todos os regimes totalitários são baseados em gerenciamentos burocráticos, e todos sem exceção são corruptos.

A razão é bastante simples: uma empresa estatal ou um órgão governamental não tem uma relação direta entre as fontes de receita e as de despesa. As receitas do governo são baseadas em leis tributárias, e as despesas não guardam proporção com as receitas, a não ser a exigência geral de que não sejam maiores do que as receitas, um preceito que a atividade política pode violar sem maiores consequências, e a criatividade fiscal fazer o resto do estrago. Quando a estatal é uma produtora, sua sustentação fica garantida pelo monopólio, a única forma de ajustar as receitas com as despesas: com esta liberdade, a corrupção pode ser uma prática constante, como de fato temos visto ao longo da história.

Assim, se a entrada não guarda uma proporção com a saída, todo tipo de injunção é possível. Em qualquer órgão de governo gasta-se baseado em critérios completamente alheios ao mercado, razão pela qual todos os amigos do estatismo, não importa a variante ideológica que assumam, encontram seu ideal de liberdade nas estatizações. Livres da exigência racional da despesa vinculada a fontes de receitas, eles podem se dedicar ao altruísmo moralista do bem-estar social, dos privilégios consentidos como autorreconhecimentos, da suntuosidade com o dinheiro alheio, da concessão em troca de apoio político, da generosidade com reivindicações sociais e trabalhistas. É o que o falecido Emil Farhat chamava ‘O Paraíso do Vira-bosta’ [T. A. Queiroz Editor, 1987].


O Sócio Oculto

A terceira categoria de organização social em que a corrupção se insere é aquela em que as exigências burocráticas ultrapassam a medida do suportável pela empresa competitiva. O estado passa de agente regulador a sócio oculto não declarado da empresa. Este é o caso brasileiro. Empresas privadas no Brasil, independentemente do fim a que se destinam, têm sempre um sócio indesejável, atrapalhado, volúvel, genioso, maléfico e usurpador. Para se precaverem contra associação tão deletéria, as empresas precisam de um grande contingente de pessoal, especialistas em direito tributário, previdenciário, trabalhista, sindical, ambiental, e por aí afora. Esquadrões de fiscais vigiam as empresas desde a colocação do alvará em lugar próprio e visível até os recibos de cartão de ponto de funcionários, as palavras proferidas pelos chefes capazes de causar danos morais, a incidência de luz solar e os possíveis efeitos ambientais da insalubridade, e centenas de pequenas coisas que não fazem parte das relações pessoais de empregados e patrões, tornadas sem efeito no arranjo social do contrato de trabalho, mas fundamento da existência do sócio invisível, da burocracia imposta com pesadas multas.

Assim sendo, se a burocracia é um conceito que explica porque uma empresa privada só pode se estabelecer consentindo em ter um sócio chamado governo, é muito natural que esta empresa privada perceba que a burocracia que lhe parasita sufocantemente pode ser a sua fonte de receitas superfaturadas e lucros extraordinários. Então uma parcela significativa do empresariado percebe que a única solução para o problema do governo como burocracia é fazer do governo o mercado. E estabelece uma relação de troca: o governo garante seu negócio e ele garante a burocracia do governo. E a sociedade passa a pagar nada menos que preços triplicados para esse arranjo institucional. São os cartórios que abundam em nossa realidade empresarial.

Nosso sistema supõe que o governo tenha toda a liberdade de criar taxas, disposições tributárias, e o que bem entender, desde que se comprometa em arrumar mercados, e os políticos não se omitam nas diligências para tal: desde os extintores de incêndio, aos seguros obrigatórios, as taxas de juro, as inspeções veiculares, as incontáveis indústrias fornecedoras do governo todas elas garantidas pela obrigação legal. E assim, se uma lei garante a própria existência do mercado, ele se chama governo, e não existe razão para a empresa não atender aos caprichos da burocracia associada.

Em tal ambiente, as empresas buscam uma compensação desempenhando o papel de fornecedoras dos órgãos públicos em uma economia em que quase 50% é consumida pelo próprio estado ou por seus agentes. Esse ambiente de promiscuidade social (promiscuidade entre um capitalismo avançado levado por uma classe de administradores profissionais e o semicapitalismo estatal, carregado por uma classe de agentes governamentais com superpoderes) forma as condições para a corrupção no mercantilismo das conveniências.

A corrupção pode ser moralmente indesejável, e de fato é, mas ela não é eticamente vencida com discursos, somente com atitudes. Fica na dependência das figuras de proa do sistema político. Com a cama pronta, se um governante honesto é eleito, ela pode ser contida em algumas iniciativas e até passar despercebida. Mas quando o próprio chefe de estado impede por decreto que o TCU investigue o destino do imposto sindical, a senha está dada, a corrupção corre frouxa como um abracadabra em que vão entrando no jogo todos os setores que sabem que a impunidade foi garantida e que tudo não passa de jogo de cena. A honestidade, nestas condições, é apenas um atributo pessoal, nunca uma exigência de decência social.

E não se enganem, uma sociedade é tanto mais refém da corrupção quanto menos lucidez possui para superar seus dilemas, quanto menor for sua capacidade intelectual de propor soluções para sua própria regeneração. Quando o problema passa a ser sistêmico, a corrupção só poderá ser saneada alterando as regras do sistema. A atual reclamação da frivolidade da oposição tem em mente esta verdade.

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