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segunda-feira, 6 de abril de 2009

Como funciona o Fascismo Auriverde

Carlos U Pozzobon

O propósito oculto — o fim último não revelado — é arrumar um encosto para os afilhados políticos que irão guarnecer os currais eleitorais com um emprego parasitário, ou então certificar empresas para atender a uma nova regulamentação criada compulsoriamente. A atividade principal do político é “produzir empregos e sinecuras em massa, para assim poder barganhar oportunidades e favores com seu eleitorado. Para ele, a empresa estatal é a grande invernada onde engorda o seu gado boca-de-urna, o curral onde poderá ajeitar o seu rebanho votante, a pastagem sem dono onde apascenta — com despesas pagas pela nação – as reses correligionárias que, docilmente, de tempos em tempos, dão a safra de votos que o mantém, sobrenadando, airoso e vistoso", na vida públicaFARHAT Emil. O País dos Coitadinhos. 1967, p. 210 .

Mas tudo tem de começar pela cartilha dos bons princípios das necessidades humanas. Inicialmente, definem-se rosários de boas intenções em torno de um tema carregado de importância vital para a humanidade, para a brasilidade, para a totalidade dos cidadãos, e, se possível, para o destino do planeta. Aí sim temos um toque de dramaticidade para deslanchar as correias do inchaço estatal. É assim que a política começa. O fim já se sabe, mas os bons propósitos precisam estar purificados pelo consenso universal.

Considere a questão da água: nada mais importante para a humanidade do que a água. No Brasil, já sabemos, alternam-se regiões com abundância a outras com escassez. Mas a escassez é fruto da incompetência governamental, embora essa evidência não possa ser falada, e, bem escondidinha, deve ser o primeiro parágrafo da grande campanha pela regulamentação. Ou então iniciam-se considerações de ordem internacional.

Não há cultura sociofascista que não tenha predileção pela análise internacional como fundamento. Portanto, é preciso situar as estatísticas de oferta de água e das terríveis privações de povos que vivem com recursos exauridos ou em constante escassez. Os outros sempre servem de empurrãozinho para comover os correligionários.

Tudo começa com a mobilização costumeira. Primeiro, os áulicos da colocação do problema desfilam pela imprensa. Depois, começam os discursos no Congresso. Por último, cria-se uma proposta de lei para resguardar os interesses nacionais com o tema e disciplinar seu uso. Está pelada a coruja. Surge a Agência Nacional de Águas. Os carrapatos correm aos seus postos succionantes. Mas tudo isso ficaria sem importância se não se criasse um imposto para a exploração da água nas propriedades rurais, com o argumento de escassez de água nos depósitos subterrâneos. Assim, o imposto disciplina seu uso, e, naturalmente, arrecada dinheiro para o governo sustentar sua burocracia. Mas, e quando faltar água? Será que alguém acredita que com o estoque de impostos o governo vai repor a água do subsolo de Cacimbinhas?

Bem, para o comum dos mortais, brincadeira tem hora. Agora, o terrorismo intelectual da escassez de água tomou conta do país. Como alguns centros urbanos estão sem novas fontes de coleta d’água, a população fica ao léu. Cidades como São Paulo precisam ir buscar água cada vez mais longe. Mas nada disso chegaria a essa gravidade se não fosse a incompetência dos órgãos públicos. Para drenar o dinheiro no desperdício não há desacerto, já para se antecipar ao futuro, não há concordância possível.

Nos anos 60, em plena seca, técnicos israelenses descobriram no subsolo do Piauí 5 baías da Guanabara em aquíferos. De lá para cá pouca coisa foi feita para dirimir a seca do nordeste, que, com a patifaria política, se transformou em indústria rendosa através do DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra a Seca). Mais tarde, se descobriu o aquífero Guarani, um mega depósito subterrâneo ocupando a metade da América do Sul, que não se esgota nem a pau, mas que no entanto rendeu em 2008 para o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), órgão vinculado ao Ministério de Minas e Energia, a fabulosa soma de R$ 857 milhões, 50% a mais do que em 2007 O Estado de São Paulo, 22/03/09, caderno H4, correspondentes às 789 concessões de lavras de exploração comercial da água.

Isso garante a participação brasileira em gororobas internacionais patrocinadas pela ONU, como o Congresso Mundial das Águas de Istambul, onde uma hidropônica delegação de políticos e burocratas se refestelou no plenário do sonífero discurso das carências humanas, para se deleitar com o turismo de ocasião. (Fosse o país sério e preocupado com as pessoas sem acesso à água, como rezam as cartilhas da ANA e da ONU, o governo teria enviado seu representante da embaixada brasileira na Turquia, reservando o resto para gastar com os “sem-água e sem-saneamento”). Segundo divulgou a imprensa, no Congresso Mundial das Águas de Istambul participaram 38 mil pessoas de todos os países. E o que se tirou de proveito para a humanidade que já não se soubesse pelos institutos científicos das tantas universidades que pululam por aí? Neca dulcineca. Apenas palavreado.Eis aí por que os americanos odeiam tanto a ONU!!!

Mas qual é a função da ANA? Seu site não poderia deixar mais claro: “A Agência Nacional de Águas tem como missão implementar e coordenar a gestão compartilhada e integrada dos recursos hídricos e regular o acesso à água, promovendo o seu uso sustentável em benefício da atual e das futuras gerações”. Este faz de conta é a própria cultura do fascismo auriverde. Será que alguém acredita em um governo que não é capaz de tapar os buracos visibilíssimos das estradas consiga promover o uso sustentável da água em "benefício das gerações futuras"? Pois quando se fala em futuro no Brasil, puxe o talão de cheque do bolso, porque vem imposto. Esta é a noção de futuro auriverde, ou de país do futuro.

Ou seja, o argumento do governo vem como um pensamento nacional de que o Estado é o guardião da nação. Mas sua contrapartida é tão somente a cobrança de impostos para pagar salários e serviços do tipo 'estudos das bacias hidrográficas', 'cadastro nacional de barragens', 'cadastro nacional de usuários de recursos hídricos', 'certificado de avaliação de sustentabilidade da obra hídrica', etc. Que prova mais contundente de fascismo que a obsessão pelo cadastro? Nosso primarismo é antediluviano: acredita-se que documentos sobre um ente nacional, como as barragens, possam servir para que elas sejam melhores, desde que o desfile de carimbos e certidões assim o atestem.

Na visão oficial, o discurso é recheado de lugares comuns, como por exemplo: “um aspecto marcante do nosso tempo é a crescente pressão sobre ecossistemas como florestas, áreas úmidas e solos, responsável por desencadear mudanças amplas e sem precedentes nos sistemas de suporte à vida da Terra".

"Soluções inovadoras são necessárias para desafios complexos. Uma das principais respostas do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) para tais desafios é o processo GEO (Global Environmental Outlook). Trata-se de uma abordagem abrangente e integrada de análise, registro e avaliação das condições ambientais relacionadas a determinado espaço geográfico ou tema, que permite operar nas mais variadas escalas, da municipal à global”. Ou então: “A água não é somente um recurso crítico em termos de segurança humana e ambiental, mas oferece também grandes oportunidades para novos avanços em termos de desenvolvimento sustentável.” (Geo Brasil – Recursos Hídricos, p. 13). Foi essa redundância do tipo água-morna que sucumbiu o Império Soviético.

No final dos anos 30, dizia-se que o Brasil havia estatizado o subsolo restando apenas as águas de superfície e o ar. Nos anos 60, a estatização causou a tragédia (hoje totalmente esquecida) da navegação de cabotagem, por cujos dutos fluíam as riquezas nacionais e que estrangularam o desenvolvimento do país por mais de 30 anos. E hoje se completa a estatização controlada das fontes d'água. Dentro de alguns anos, nossos manda-chuvas vão inventar um jeito de melhorar o irrespirável ar dos centros urbanos com alguma agência nacional dos ares, alguma coisa muito parecida com a das águas, pois não faltará a experiência legisferante desta, que tudo fez para deixar os produtores rurais à míngua. É só começarem a falar em melhorar o ar do país, combatendo as queimadas, a fumaça das emissões, que vem órgão público. E, claro, um impostinho adicional para os fumantes.

Este é um ciclo do fascismo auriverde. Ele se baseia na premissa de que cabe ao Estado regular o uso de um bem comum a todos os brasileiros. Não se supõe que o acesso aos recursos hídricos seja feito por associação espontânea dos interessados, ou das comunidades e poderes locais. É preciso a mão regularizadora do governo federal para dar legitimidade ao seu uso. E tome burocracia e impostos. Ao brasileiro só resta a resposta que todos os seres humanos dão nas circunstâncias de serem cobrados por impostos que não têm volta, ou que são calcados no absurdo estatizante: mentir, fazer de conta, dissimular, subdeclarar, subfaturar, exercer plenamente seu bifrontismo.

A cobrança dos recursos hídricos foi estabelecida na lei 9.433 de 8 de janeiro de 1997, mas somente implementada dez anos mais tarde. Dizia a lei que a “cobrança pelo uso de recursos hídricos objetiva:

  1. reconhecer a água como bem econômico e dar ao usuário uma indicação de seu real valor;
  2. incentivar a racionalização do uso da água;
  3. obter recursos financeiros para o financiamento dos programas e intervenções contemplados nos planos de recursos hídricos.”

Se por “programas e intervenções” entendermos o papelório de sempre, aí sim está tudo justificado. Mas no artigo 21 da mesma lei, vem a disposição sobre a cobrança:
“Na fixação dos valores a serem cobrados pelo uso dos recursos hídricos devem ser observados, dentre outros:

  1. nas derivações, captações e extrações de água, o volume retirado e seu regime de variação;
  2. nos lançamentos de esgotos e demais resíduos líquidos ou gasosos, o volume lançado e seu regime de variação e as características físico-químicas, biológicas e de toxidade do afluente.

Art. 22. Os valores arrecadados com a cobrança pelo uso de recursos hídricos serão aplicados prioritariamente na bacia hidrográfica em que foram gerados e serão utilizados:

  1. no financiamento de estudos, programas, projetos e obras incluídos nos Planos de Recursos Hídricos;
  2. no pagamento de despesas de implantação e custeio administrativo dos órgãos e entidades integrantes do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.

§ 1º A aplicação nas despesas previstas no inciso 2 deste artigo é limitada a sete e meio por cento do total arrecadado.
§ 2º Os valores previstos no caput deste artigo poderão ser aplicados a fundo perdido em projetos e obras que alterem, de modo considerado benéfico à coletividade, a qualidade, a quantidade e o regime de vazão de um corpo de água.”

Por quinhentos anos o brasileiro não precisou pagar impostos pelo uso da água: era entendida como um bem comum. Agora não: bem comum passou a se chamar governo. Ultimamente vigora o princípio de que a água é um “bem econômico e por isso se deve dar ao usuário uma indicação de seu real valor” (artigo primeiro acima). Que discurso é este? Quando é que a água não foi um bem econômico? E o que significa “dar ao usuário a indicação de seu real valor”? Isso é uma confissão de que sendo um bem, o povo que pague impostos, pois os bens pertencem ao Estado e essa coisa de propriedade privada que vá para o inferno. E com isso Brasília regurgita na satisfação de mais um órgão público para apadrinhamento político, com altos cargos, na sempre crescente onda tsunâmica de taxação.

Os acontecimentos posteriores para implementar esta legislação são bizarros. Os técnicos do DAEE visitam as propriedades rurais e inspecionam as fontes d'água. Se encontram um poço não cadastrado, inicialmente dão 30 dias de prazo para que a situação 'seja regularizada'. Este eufemismo significa que o agricultor tem que conseguir uma 'outorga'. Se a água for usada para plantação, piscicultura e quetais, a coisa é mais complicada: é preciso procurar um profissional com registro no CREA para assumir a responsabilidade pelo empreendimento. Isto pode custar até R$25 mil reais. E se a intimação for desrespeitada, a multa pode iniciar em R$1.474,73, podendo ir subindo para até R$4.635,73 por dia (OESP 2/3/09). Um piscicultor em São Miguel Arcanjo teve que fazer um projeto, com levantamento planialtimétrico, topográfico, e estudo da vazão de um riacho. Custo estimado com a burocracia: R$15 mil. Mas como tinha suprimido a vegetação da chamada mata ciliar, foi multado em R$2,4 mil. Teve também o caso de um plantador de batata que, multado em R$2 mil, pagou e continuou usando a água para a irrigação. Pensava em livrar-se do fisco líquido. Recebeu outra multa de R$7 mil e mais uma de R$150 mil, além de processo por crime ambiental. O batateiro quebrou e deu no pé.

A questão ambiental é dramática. Se você tem uma área próxima a um lago, desmatada desde o século XIX, você pode ser acusado de ter desmatado a mata ciliar. Poderá provar sua inocência, sem dúvida, mas ao custo de muito vai-e-vem na burocracia, outro tanto na justiça e incontáveis prejuízos, se você depende de investimentos urgentes. A questão da água só piorou o Brasil. Enquanto isso a burocracia se refestela com mais dinheiro para o caixa (d'água) dos cartórios.