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terça-feira, 29 de setembro de 2020

Por que o Rio ruiu

Carlos U Pozzobon

Do blogue Vespeiro
Meu comentário segue abaixo.

O Rio é o Brasil de amanhã?

Felizmente não…

Quando penso no Rio de Janeiro a imagem que vem-me à cabeça é sempre a de uma criança inocente violentamente abusada pelo pai. O tipo de coisa que deixa marcas que só muita, mas muita “análise” mesmo, pode levar a uma superação.

Pela primeira e única vez na História uma colônia, virgenzinha ainda, sediou uma capital de império. Foi talvez a corte mais decadente da Europa, a de um dos últimos monarcas absolutistas, que desembarcou na futura Cidade Maravilhosa. 15 mil encostados de um homenzinho balofo, filho de uma louca, Maria I, que tornou-se rei depois que o primogênito d. Jose morreu e a mãe foi declarada incapaz, que fugiram correndo para cá com tudo quanto puderam carregar quando seu povo mais precisava deles na véspera da invasão de Portugal pelas tropas de Napoleão. Foi essa “a malta” que, em 1808, desembarcou no cais do Valongo de um Rio que era ainda uma aldeia linda, chutando as pessoas para fora de suas casas, confiscando, violentando, corrompendo…

A corte de d. João VI roubou ao Brasil o século 19 das revoluções democráticas. Capital desde 1763, já se reformulara de porto de contato com o mundo de seu tempo em cobrador de impostos que ia bem quando o resto do Brasil ia mal … e vice-versa. Foi esse o alvo da Inconfidência Mineira, a derradeira despedida do Brasil da modernidade política.

A partir de 1808 passa a ser, ele próprio, a metrópole que explorava a colônia. Uma vez instalada aqui, saiu sua majestade vendendo títulos de nobreza a traficantes de escravos e funções do Estado a quem pagasse para explorá-las. Foi com a revolução americana que Tiradentes sonhou mas foi como a sede da corte, da corrupção, do funcionalismo e das estatais que o Rio de Janeiro acordou e evoluiu para a vida real. O balneário de todos os ladrões de sucesso de todos os governos do Brasil. A maior porcentagem de encostados com emprego e sem trabalho. A capital da jogatina de Bêjo Vargas. O paraíso dos aposentados aos cinquenta anos de idade. A pátria da “malandragem” onde trabalho sempre foi “coisa de otário”, “mané” é o ladrão que vai preso e “malandro” o que não se deixa pegar.

E tudo isso potencializado pela memória da escravidão dependurada dos morros.

De repente, juntando Witzel com Bolsonaro, saem os jornalões com uma semana de análises sobre porque o Rio ruiu. Mas quando Bolsonaro entra pela porta de uma redação a racionalidade sai pela janela…

A passagem da capital, com Juscelino, nunca foi a causa do desastre carioca. Foi só mais uma “co-morbidade”. O governo se foi mas a elite do funcionalismo ficou. Chagas Freitas, o único governador do MDB de sua época, apoiava os militares que o partido “combatia”. Brizola foi o primeiro a proibir a subida da polícia aos morros que o STF reedita agora sob o tonitruante silêncio dos jornalões.

O crime organizado sempre elegeu representantes nos legislativos cariocas. Condecoram milicianos hoje como é praxe desde os tempos dos Reinados, do Império e da Republica. As milícias só inovaram por eleger os próprios milicianos. O governo federal as protege assim como os reis faziam os seus barões negreiros, o jogo do bicho bancava os governadores antes e depois de 1964 e o PT protegia as Farc e suas versões nacionais que só davam acesso aos cabos eleitorais do lulismo aos morros. O PSOL, herdeiro da esquerda da esquerda e fenômeno tipicamente carioca, é ostensivamente ligado ao crime “ideologizado”. Sua base-raiz são os presídios de segurança máxima…

Os artistas e os intelectuais “orgânicos” sempre foram um corolário do absolutismo. Nasceram com ele e fizeram-no crescer desde a primeira universidade lá na Bolonha de 1300. Só continuam onde estão, na era do avião, porque Brasília é intragável, menos para quem vive do contato físico com O Poder.

E agora? O que fazer?

A História, a “análise” das sociedades, e somente a História, poderá proporcionar uma remissão. E a do Rio é freudianamente clara. Ele terá de compreender, passo a passo, como foi que se transformou no que é para curar-se. Mas este é um luxo de sociedades ricas.

A solução, portanto, é enriquecer. E muito!

Desanimou?

É mais fácil do que parece. A imprensa – e aí falo dos jornalões aos jornalinhos pretensamente mais aguerridos da internet – finge que não entende, mas é mentira. Qualquer sujeito um grau acima da debilidade mental, não precisa nem ter instrução formal, entende que a instituição do voto distrital puro com recall (vale dizer a expulsão sumária de todo ladrão ou mentiroso pego no pulo), mais referendo e iniciativa de fazer e recusar leis vindas de cima, de modo que o povo é quem passa a dizer o que deve ou não ser discutido e votado, entende o poder fulminante que esse sistema tem contra a corrupção. Onde quer que vigore ele acaba com praticamente 100% da roubalheira. E, num país de dimensões continentais como o Brasil, pode ser implantado nos 26 estados e nos 5570 municípios onde se dá a “ladroagem do cotidiano” bem conhecida de cada um de nós.

Sobra a que se pratica daí para cima, e mesmo assim, sob um nível de fiscalização e poder de decisão dos roubados que torna os ladrões efetivamente tímidos. Com esse sistema aguenta-se até um Donald Trump praticamente sem dor, a não ser para os fanáticos por conversa mole sobre os temas caros à “patrulha ideológica” que custam quantias verdadeiramente risíveis para quem vive sob o tacão de funcionários indemissíveis e seus STF’s de comedores de lagostas com vinhos tetra-campeões por decreto.

A solução para o Rio de Janeiro ver aquelas favelas todas se transformarem em Alfamas e o Brasil sair do brejo passa por aí e não, obviamente, como sabe deus e a torcida do Corinthians, por aumentar o número de candidatos negros e mulheres fabricados em cima da perna na base de injeções de contribuições do Fundo Partidário arrancadas a força de eleitores que nunca ouviram falar neles antes mas acabarão, na hora de votar, por tê-los como únicas opções para mais uma tentativa frustrada de fugir ao cativeiro.


Comentário:

A decadência do Rio segue o rumo da decadência do mundo ocidental. Tem suas peculiaridades. Mas não são exatamente históricas, ainda que a história explique muita coisa. Vou focar um dado constitutivo da cultura brasileira.

1) A docilidade e o servilismo.

2) A brutal diferença entre a vida estoica e a vida epicurista.

1) No primeiro caso considero errado imaginar que nossa docilidade provém das relações patrão-empregado. Muito mais, carregamos na ancestralidade como nação a percepção de que tudo se resolve no compadrismo, no jeitinho e que nada nos impede conseguir burlar o que nos é imposto na relação estado-cidadão porque não passam de exigências para inglês ver. Complementar à docilidade, o servilismo é o modus operandi da corrupção. Se não aceitarmos deixar a coisa rolar, temos inimigos prontos para acabar com nossa reputação. Isto vale para a política, para o funcionário público, para quem quer que seja. A cumplicidade é o único remédio para não ser suspeito.

Já falei neste espaço sobre a indispensável rigidez moral de um povo para alcançar o status de grande nação. Foi o que observei nos americanos de outros tempos, lá atrás na década de oitenta, quando não se tergiversava sobre a moral comum estabelecida pelos “originalistas”. De lá pra cá começou a fazer água porque:

2) O mundo tecnológico levou gradativamente a sociedade a um hedonismo tanto maior quanto mais seguro se encontra o cidadão de seu destino. Riqueza acumulada, estabilidade no emprego, etc. O Rio oferece uma facilidade observacional sem precedentes. O espírito carioca se confunde com o epicurismo como realidade de vida para sua classe média que centrifuga todo o resto.

Com um pouco de SENSIBILIDADE LITERÁRIA, algo raro neste milênio, é possível perceber diferenças, digamos, entre o habitante de Porto Alegre e o de Bento Gonçalves, entre o de Blumenau e o de Florianópolis, e assim por diante Brasil acima. Nas cidades onde o funcionalismo é pequeno, o estoicismo como condição de vida prevalece. O mérito desfrutado pela oportunidade e escolhas pessoais não divide os cidadãos entre privilegiados e excluídos. Não convida à violência. Não marginaliza os cidadãos no cinismo. Não gera ódios entre os escolhidos e os rejeitados ao desfrute estatal. Não existem satiristas em cada esquina porque a vida séria do trabalho repudia o espiralado desdém do futriqueiro de plantão.

Quem se detém na literatura brasileira de todos os tempos, observa que o Rio foi o teatro da inteligência brasileira. Nosso repertório de boas coisas enche um baú de criações de origem carioca. No entanto, a vida inteligente nestes tempos se reduz cada vez mais. Aqueles grandes escritores, cronistas, jornalistas, se reduzem paulatinamente com o avanço da decadência. O que antes era a atenção nacional, hoje se reduz a um punhado de sobreviventes. Quem pode escolhe a saída do Galeão.

Uma cidade que gira em torno de um conglomerado de enclaves ideológicos não é uma cidade. É apenas um campo de batalha em que todos de alguma forma são um partido político e todos convergem para a acomodação com o governo de plantão atual ou do passado. Perdeu-se os ideais. Até os liberais cariocas são diferentes dos paulistas. Este modelo político, para uma cidade essencialmente política que foi o centro de atenção nacional, acabou na triste constatação de um século atrás feita por José Ingenieros:

“A política degrada-se, torna-se profissão. Nos povos sem ideais, os espíritos subalternos crescem à base de intrigas vis de antecâmera. Na maré baixa sobe o que é desprezível e entorpecem-se os traficantes. Toda excelência desaparece eclipsada pela domesticidade. Instaura-se uma moral hostil à firmeza e propícia ao relaxamento. O governo fica nas mãos de gentalha que devora o orçamento. Abaixam-se os muros e alçam-se as esterqueiras. Diminuem-se os louros e multiplicam-se os cardos. Os cortesões convivem com os malandros. Progridem os equilibristas e volteadores. Ninguém pensa, onde todos lucram. Ninguém sonha, onde todos tragam. O que antes era sinal de infâmia ou covardia, torna-se título de astúcia: o que antes matava, agora vivifica, como se houvesse uma aclimatação ao ridículo; sombras envilecidas levantam-se e parecem homens; exibe-se e ostenta-se a improbidade, em vez de ser vergonhosa e pudica. Aquilo que nas pátrias se cobria de vergonha, nos países cobre-se de honras.”

O Homem Medíocre deveria ser relido nesses tempos de impostura. Principalmente pelos cariocas.


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