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terça-feira, 9 de junho de 2020

O Curioso Conservadorismo Brasileiro

Carlos U Pozzobon


Em Brasília, manifestantes pedindo o fechamento do Congresso e intervenção no STF se anunciam democratas vigilantes dos perigos da deposição de Bolsonaro. O raciocínio não deixa de ser metafísico: com o Congresso fazendo o que bem entende, e o STF usando e abusando do direito de dar palpite sobre as manchetes da imprensa, é preciso pôr ordem na Casa, e isso deve ser feito utilizando o artigo 142 da CF para que uma intervenção do exército feche aqueles poderes horrorosos da República e uma paz social se estabeleça nos livrando dos tumultos e sobressaltos do cotidiano.

Alguém conhece um recanto de debates onde se pondera se tal ideia funciona? Não consegui descobrir e, no entanto, a repetição domingueira, como se fosse uma missa de louvação ao presidente, vem sendo celebrada invariavelmente.

O erro do pensamento revolucionário consiste na certeza de que uma mudança radical seja capaz de “transformar a sociedade”. Em tese, isto só seria possível se toda a sociedade estivesse envolvida para que da conflagração novos valores germinassem. No Brasil todas as revoltas dos séculos XIX e XX foram dominadas pelo poder central que continuou sendo o mesmo.

Ocorre que a turma do “fechamento” jura de pés juntos ser conservadora. Entretanto, qual a ligação com o conservadorismo que se conhece, por exemplo, da ciência política inglesa com a nossa herança histórica?

A essência do pensamento conservador é o ceticismo. Entendido como uma visão particular de que os assuntos humanos não são exatos como nas ciências naturais em que causa e efeito podem ser mensurados, o conservadorismo parte da premissa de que no terreno social, tudo é incerto. Em decorrência, não nega mudanças, mas adverte para a prudência, porque em se tratando desse ser humano chamado inapropriadamente de racional, as coisas podem dar errado. Como, de fato, a história tem comprovado.

Para existir um conservadorismo respeitável é preciso uma tradição em que ele possa se assentar e, a partir dela, servir de guia para o futuro. Em geral, esta tradição consiste no legado de uma revolução de baixo para cima que estabelece novos princípios, leis e se enraizou no coração do povo, de tal forma que sejam reconhecidos pela sociedade como um fator fundador. Não é coisa de gabinetes, de golpes e contragolpes, que apenas criam novos milionários. A partir de então passa a ser a fonte de inspiração das gerações sucessivas. Já adverti no artigo Operações Proteiformes que nada em nossa tradição permanece como tal. Muda-se tudo, ou quase. Por uma obsessão lampedusiana nossas as instituições, partidos, organismos reguladores, ministérios, tributos, tomadas elétricas, sintaxe da língua e o que se possa imaginar, vão sofrendo mutações ao sabor da vontade de ser diferente, de esconder as vergonhas da corrupção com a roupagem de novos nomes, ou de achar soluções formais sem o mínimo respeito à tradição. Nossa mudança de nomes é uma revolução permanente. Mas com a peculiaridade de que as pessoas envolvidas permanecem na nova estrutura, como o marido traído que troca o sofá para resolver a prática de infidelidade da mulher.

Assim, o que esperar de um conservadorismo numa realidade que nada se conserva? Não se evoca o Parlamento como instituição secular porque se transformou em um saco de gatos com reputação de lupanar. Não se evoca a Constituição, sempre anacrônica ao ponto de ser reformada ou abolida para dar lugar a uma nova. Não se evoca o sistema eleitoral representativo, e a lista segue.

As opiniões que se relacionam com o Império ou com a Abolição, e depois com a República, estão centradas em um enorme elenco de escritores, porém com que fatos da atribulada vida política nacional? A nossa independência foi produzida por Portugal, e a Proclamação da República considerada um golpe de estado. A revolução de trinta? Esqueça. Ela vale menos que a abominável herança que deixou. Qual o sentido de atribuir ao conservadorismo o costume de se referir à bandeira ou símbolos pátrios? Símbolos, como o hino nacional, não são para uso exclusivo de conservadores. Nosso conservadorismo é uma massa amorfa impotente para nos servir de guia e orientação para o presente. E, na falta de tradição, foi encampado pelo maior porra-louca da “inteligentsia” nacional para servir de escudo às ideias revolucionárias do bolsonarismo que se diz conservador.

Não se pode ignorar que na herança histórica, os povos são obstinados na preservação dos mitos poligenéticos. Corresponde a idealização de um momento primitivo de interação social que deve retornar, sob forma superior, num estágio final da história humana. O mito poligenético na América Latina está nas invocações do Sandinismo, do Zapatismo, dos Montoneros e de Tupac Amaru. E entre nós, na glorificação de Tiradentes e Zumbi dos Palmares. Não servem de referência para o conservadorismo.

Anos atrás, comentei uma entrevista de jornal com um famoso chefe de cozinha francês, cujo restaurante era frequentado pela alta sociedade. Disse ele, em certo momento, que a experiência brasileira era muito peculiar para um francês que escolheu o Brasil para viver. Em seu cardápio havia um prato honroso de nossa tradição chamado “pato ao tucupi”. Diz ele que ninguém pedia o tal prato. Certo dia, teve um lampejo de brasilidade e trocou o nome do prato para “canard a l'essence d'orange”. Começou a vender adoidado.

Quando visitei Washington pela primeira vez, em 1983, ao entrar numa “liquor store”, deparei com uma garrafa de destilado que dizia: “rum de Pernambuco”. Intrigado, comprei a garrafa e no hotel, ao provar, era cachaça. Voltei no dia seguinte para decifrar o quebra-cabeças e o proprietário me contou que não poderia vender o produto “cachaça” porque não era nome registrado nos EUA e ademais ninguém saberia o que quer dizer cachaça, e sequer pronunciar. Comprova que a cultura popular, da comida à bebida está em toda a parte no costume do povo, mas não sobe às elites.

Foi preciso a Internet para que as empresas brasileiras começassem a se internacionalizar no agitado fenômeno da globalização dos anos 90. E agora, já exportamos até cachaça. Por isso, os intelectuais conservadores, vivem da narrativa estrangeira traduzindo e adaptando o sumo de outra cultura para a nossa. Nenhum deles que eu conheça tem a mínima intimidade com a literatura brasileira.

Considere, por exemplo, o caso da borracha brasileira. O que aconteceu com a borracha tem proporções parecidas com o declínio do petróleo na Venezuela sob o chavismo. A Venezuela importa hoje gasolina sendo uma das maiores produtoras mundiais no final do século. Com a diferença de cem anos da crise da borracha. Mas o conteúdo humano desagregador é o mesmo. O comunismo venezuelano não tem nada a dever ao nosso regime de exploração da hileia. Será? Se um regime se caracteriza pelo que anuncia, o próprio bolivarianismo não seria comunista: eles se lisonjam dia a dia se autodenominando democratas.

Estudando o ciclo da borracha percebe-se que não deixa nada a dever a Sibéria de Stalin. De grande produtor mundial saímos fora do mercado. Nosso fracasso é atribuído ao roubo de mudas efetuado pelos ingleses que as levaram para o sudeste asiático. Com isso nos reconfortamos em uma explicação que nos exime de refletir mais além do vitimismo banal. Examinando a questão, verificamos que a perda de competitividade de nossa borracha foi motivada pela questão tributária (examinada por Carlos de Vasconcelos em livro de 1906 e apontada 30 anos antes por Tavares Bastos). É o mesmo motivo que tem fechado fábricas nacionais por incapacidade de competição com os chineses. Nossos economistas, sempre anunciando a necessidade de uma reforma tributária, deveriam se deter na formação do estado brasileiro e sua impossibilidade de cortar gastos. Sem isso, qualquer dinheiro que entrar no caixa dos governos logo desaparece, como ocorreu com os royalties do pré-sal.

Achar que a corrupção possa ser combatida com chamamentos à moral, se a própria organização do estado foi aperfeiçoada para que ela se institucionalize, significa viver na ilusão de que se pode ser um conservador vestindo um casaco de tweed inglês, cartola e bengala.