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sexta-feira, 12 de julho de 2024

Escritor Premiado? Ignore

Sabemos que se escreve por vocação, mas também se escreve por destino. Em qualquer caso, a vida literária em uma época de queda brutal na venda de livros impressos e, paradoxalmente, de multiplicação exponencial de escritores, faz com que a carreira do escritor se volte para a busca desesperada de notoriedade através dos canais que conferem respeitabilidade pela premiação adquirida.

Porém, quando os vínculos sociais do demérito são oficializados nos escaninhos do poder, quando o sistema de seleção negativo passou pelo aggiornamento na prática institucional, as oportunidades se abrem para aqueles que de alguma forma estão surfando na onda das camorras usufrutuárias do preferencialismo.

É o caso do Prêmio São Paulo de Literatura oferecido pelo governo do estado dividido em dois: um para obra de ficção de estreia, e outro para autores com mais de um livro publicado. Os vencedores receberão 200 mil mangos cada um.

O edital, bem como as inscrições para o prêmio podem ser obtidos no site da Secretaria de governo .

A primeira exigência consiste em passar pelo cadastro no CADIM, para obter login e senha e entrar no sistema. O Cadastro Informativo dos Créditos não Quitados de Órgãos e Entidades Estaduais existe para dizer que você está limpo com o governo do estado em débitos tributários. Parece brincadeira, mas não é. O dinheiro sai da secretaria da fazenda, e como é possível alguém receber alguma coisa do estado se não provar sua inocência? Uma licitação para comprar um bilhão de reais em arroz importado não precisa dessas tranqueiras, mas a atividade literária, sim.

No segundo requisito, o edital informa que o prêmio está aberto a concorrentes nacionais e internacionais. Clicando na seta indicada, aparecem as condições em que um livro compete. O único dado importante é a data de publicação que deve ser do ano passado. Ficamos sabendo também que “os curadores e os jurados são profissionais com reconhecida experiência e conhecimento na área de literatura, oportunamente nomeados pela Secretária da Cultura, Economia e Indústria Criativas”.

Observo, por antecipação, que os julgadores são mantidos em sigilo, porque a escolha deles é que revelará o truque dos vencedores.

Como ocorre em outros prêmios, serão provavelmente todos com menos de 30 anos, na faixa de idade em que pouco se leu e muito se sabe.

A seguir temos, enfim, “Seus Dados”. Tudo muito simples, incluindo o endereço. E vamos para outra página que repete tudo de novo caso a pessoa física e o autor sejam os mesmos, isto é, se não estão representados pela editora.

No campo seguinte, começam as exigências para filtrar o grande gênio literário que haverá de aparecer do concurso: cópia fotografada de sua RG, CPF e do CADIM estadual que você obteve no site da Secretaria da Fazenda.

Parece surreal que alguém precise apresentar a cara. Seria para saber a cor da pele? Se é de boa aparência, de idade aceitável ou está fora do quadrado previamente inserido no contexto?

Antigamente, quando os costumes eram impessoais e mais meritórios, o prêmio de poesia e prosa implicava necessariamente em o autor assinar com um pseudônimo, colocando o nome legítimo em um pedaço de papel dentro de um envelope lacrado.

Atualmente, os julgadores se escondem, e os concorrentes se expõem com todos os requisitos cadastrais. Como isso é possível? A resposta não possui nenhuma novidade: os prêmios do passado eram legitimados porque a Comissão Julgadora era anunciada com nomes dos principais poetas, cronistas e escritores em evidência na imprensa. O candidato poderia aspirar ao prêmio pelo conhecimento que tinha da obra de seus julgadores. Ao menos era uma esperança. Agora, rompeu-se a transparência e ele sabe que participa só para fazer número, engajando-se na desonestidade dos novos tempos em que o esforço seja recompensado com uma observação sobre si mesmo escrita na contracapa de seus livros e rodapés de jornais do tipo: “finalista do prêmio de melhor escritor do ano de 2023”. Afinal, se participou da farsa, não há por que não usá-la em benefício próprio.

Como o EDITAL informa que o prêmio será concedido tanto a brasileiros nativos como a residentes no exterior, na continuidade do processo de inscrição o proponente precisa preencher o nome da obra e a categoria (se estreante ou não), o nome da editora e o número de 13 dígitos do ISBN fornecido pela CBL, a sempre invocada Câmera Brasileira do Livro. Se publicou no Amazon ou em uma editora de impressão sob demanda, tá ferrado. Se a editora ficar em Portugal, também.

Na etapa seguinte, vem o upload do PDF do miolo e depois da capa. Isto deveria ser proibido, se houvesse qualquer constrangimento com relação à probidade do processo, uma vez que o edital deveria exigir o PDF com apenas o pseudônimo, sem capa, sem apresentação.

Logo após entra uma seção chamada de “Participação” no qual é exigida uma “Cópia simples da Declaração de Intenção de Representação do Prêmio assinada pelo(a) autor(a)”. Se você for o próprio autor precisa dizer que tem a intenção de representar o prêmio a que você concorre? Evidentemente, que sim. O candidato à glória literária imprime uma cópia assentando o compromisso: “DECLARO que, caso seja finalista do Concurso ‘Prêmio São Paulo de Literatura 2024’ e receba a proposta de representá-lo, envidarei esforços para participar de festivais, feiras eventos e/ou eventos culturais, presenciais ou virtuais, determinados pela Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas”.

Não falam se vão descontar o espumante e os salgadinhos do coquetel do prêmio que o vencedor receber, mas certamente que este vai fazer uma peregrinação por escolas públicas, dar entrevista para a Folha de SP, para blogueiros e celebridades que lhe farão perguntas sem sequer terem lido meia página do livro. E quem se importa depois que embolsou o dinheiro do prêmio?

E agora, para perplexidade geral, o proponente deverá enviar 10 cópias do livro original no momento que sua inscrição for aceita. Como vai ter alguns milhares de competidores, o PDF enviado não serve para nada, a não ser para inspecionar e dizer que você não foi classificado por causa de algum detalhe, como misteriosamente acontece em licitações do governo. Como a participação deverá ser de milhares de escritores, pode-se imaginar que a Secretaria vai ficar entulhada de livros, que depois vão para um galpão e ficam lá acumulados com os do ano anterior.

Por último, se o pretendente à glória literária não for dotado de qualidades narrativas na difícil arte de ficção, provavelmente estará mais próximo do prêmio. Desde que seu livro seja escrito no estilo mais escorreito possível, sem lantejoulas verbais, sem gírias, mas com algumas obscenidades politicamente relevantes para causar algum chamativo no velho truque de escandalizar como ato propagandístico de autopromoção, sem arcaísmos, mas com algumas brutalidades do léxico, especialmente da escritura neutra.

Basta que a história contenha um ou mais casos de vitimismo, racismo, superação, conflitos de gêneros, angústia existencial e, naturalmente, um final feliz.

Se quiser saber como será decidido o melhor livro do ano, tenho mais uma dica infalível. Leia a seção II do Capítulo II de meu "Os Ossos do Cavalo de Troia". Ali estão descritos os truques de seleção. E, naturalmente, lendo um pouco mais, poderá entender porque meu livro de 2023 não se classifica. Não pense que tentei.