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quarta-feira, 18 de março de 2009

Inspeção veicular

Carlos U Pozzobon

Quando a burocracia triunfa com seu ideal de pureza, com seu arsenal de moralidade, a sociedade sucumbe na contravenção, na ilegalidade, naquilo que eufemisticamente se chama “informalidade”. Isso deve-se ao fato de o arrocho burocrático não permitir mais conviver com as exigências do Estado, e o cidadão, o grupo, a empresa, deslizam inexoravelmente para o deixa-pra-lá, para o ceticismo e para o desrespeito ao próprio Estado, que carregado de boas intenções tudo faz para montar nas costas do cidadão a obrigação de provar que não é culpado dos males imputados à sociedade.

É o caso da inspeção veicular. Em 2002, o CONAMA (Comissão Nacional do Meio Ambiente), órgão ministerial, decidiu que o combate à poluição nos centros urbanos deveria ser iniciado com a mudança no padrão dos principais combustíveis poluentes, no caso, o óleo diesel. Para quem não sabe, a Petrobras – a queridinha do Brasil – produz o diesel com 1500 partes de enxofre por litro (ppl), enquanto a Comunidade Europeia produz com 10 ppl e os EUA com 15 ppl. No Brasil, existem 2 dieseis, um para consumo urbano e outro para estradas. Na reunião de 2002, ficou acertado que em 2008 o diesel seria reduzido em 200 ppl para consumo urbano e 500 ppl para estradas. Não se sabe o porquê de tanta liberalidade, ou melhor, você já percebeu que o certo seria a Petrobras se adequar aos padrões de primeiro mundo.

Mas não foi o que aconteceu. Passado o tempo de adequação, nada foi feito. Como o CONAMA havia previsto que o combate à poluição também deveria ser feito por inspeção veicular, logo passou a certificar empresas que realizassem o serviço. Arrumar um mercado cativo é a maravilha do capitalismo estatal e logo a fila dos pretendentes cresceu como fila do INPS.

Mas em Sampa, não era possível passar os carros pelo crivo do cano de descarga. Era, portanto, necessário se arrumar uma fórmula para não inspecionar os necessitados e mandar a conta para a classe média. Como os carros poluidores são em geral os carros velhos, inventou-se a solução de inspecionar os carros novos, aqueles que não precisam de inspeção. Com isso, o fardo de perder um dia por ano (um para os sindicatos, mais um de bandeja para os inspetores dos veículos, este não na forma de remuneração, mas na perda de tempo) para obter a certificação, caso contrário, seria bloqueado o licenciamento do veículo.

Bem, e o combustível? Ora essa, que maçada! Impor-se-ia à Petrobras a obrigação de importar o diesel para melhorar a frota urbana. Entenderam? Este é o nível intelectual dessa gente. Isto significa que se o barril estiver em 30 dólares, teremos um preço, mas se subir para 150 dólares, como ficam os ônibus urbanos, esses que vivem do transporte e de propinas a políticos de todos os quilates? É muito provável que também pensarão em abandonar o diesel. Mas será isto possível?

A questão mais elementar, e sequer ventilada nos debates radiofônicos em São Paulo, é que o problema do combustível poderia ser resolvido com o biodiesel, se houvesse liderança, iniciativa, capacidade de governança, coisa que não vemos, não temos e não entendemos.

Por que a frota de ônibus urbanos não é aparelhada com biodiesel puro? Por que colocar míseros 3% de biodiesel no óleo diesel convencional, se esta porcentagem é insignificante? Não seria melhor consumir os 3% puros nos centros urbanos e deixar o diesel como está para o resto? Por que não aparelhar os carros de transporte de valores, por que não iniciar uma política de incentivos para uso do álcool em transportes urbanos, em motores de potência? Todos sabem que as motos poluem mais que os carros. Mas por que ninguém fala disso e não se criam programas para substituir o combustível do motor a 2 tempos? Não é possível fazer um motor de motocicleta a álcool? Não temos laboratórios para uma pesquisa deste tipo? Não há respostas para estas perguntas.

Além do mais, se o biodiesel é uma solução, por que o governo não acelera os incentivos para produzir biodiesel a ponto de atender às necessidades do país? Seguramente a quantidade produzida é insuficiente até mesmo para a frota de ônibus urbanos. Se esta atitude fosse tomada, o governo teria iniciado um programa em que os produtores saberiam como se posicionar para o futuro, pois a demanda ficaria clara e a mobilização nacional faria o resto. E até a Petrobras poderia ficar com o horizonte mais tranquilo, do ponto de vista de investimentos, porque saberia exatamente onde e o quanto teria que fazer com o diesel comum. Então, o que está faltando? Falta o que nunca se teve: visão estratégica, capacidade de planejamento, clareza quanto aos limites da produção de combustíveis orgânicos, políticas públicas para além do horizonte eleitoral, assentimento da população, isto é, liderança.

Agora nos empurram goela abaixo a inspeção veicular. Provar o que está mais do que sabido: carros novos despejam pela descarga os subprodutos do combustível da Petrobras. Nada mais nada menos. E ainda tem que provar. E os carros velhos? Bem, aí vem a maior ameaça aos governos. Se você tem um carro cuja descarga é fumacenta e não tem dinheiro para a retífica do motor, então você não vai pagar o IPVA e nem o licenciamento. Isto significa que o governo vai jogar na informalidade milhões de veículos, ou a corrupção vai correr frouxa, o guardinha vai liberar o carro sem documentos mediante uma módica propina, e assim por diante. (Alguém acredita na polícia?) E, naturalmente, os governos estatuais que — supostamente — aplicam o dinheiro do IPVA na manutenção de estradas estaduais, vão assistir o caixa minguar.

Será que não se entende que o problema do trânsito de veículos nas ruas é um espelho da sociedade? E será que a ninguém ocorre que — além da classe média — somos formados por um subcapitalismo motorizado, sem condições de aparelhamento, e que isso é sobretudo uma das causas dos nossos elevados índices de acidentes de trânsito?

Se o problema da poluição é tão dramático, a polícia já teria meios de prender veículos cujo escapamento mostrasse a fumaceira inequívoca do ambientalmente inaceitável. Artigo 231 do CTB: "transitar com o veículo produzindo fumaça, gases ou partículas em excesso. Infração grave: multa R$127,69, podendo reter o veículo para regularização". Por que não o faz? Porque sabe que teria que arrumar monstruosos parques de estacionamento — tal a quantidade de carros em circulação abaixo das condições aceitáveis —, e, além disso, privar uma parte significativa da sociedade dos meios de trabalho. Não ficaria pedra sobre pedra para os entregadores de material de construção, os prestadores de serviços esgoelados pelo orçamento minúsculo, os fretistas, biqueiros e naturalmente as pessoas que dependem deles.

De onde se conclui que a solução passa por um trabalho mais complexo. Primeiro, a polícia poderia agir de modo mais civilizado ao deter um veículo poluente, em vez de multá-lo, poderia emitir uma notificação com prazo de 45 dias para o proprietário se apresentar com o veículo para inspeção, orientando sobre o que deveria ser feito. Não comparecendo, o proprietário ficaria sujeito ao aumento na coerção até o ponto de retirar seu veículo das ruas. Afinal, veículos também têm endereço residencial.

Em segundo lugar, concentrar-se no que efetivamente tem que ser o foco — o cano de descarga. Parar de fazer inspeção para verificar se os pneus estão em boas condições (esta é uma advertência válida para as estradas, mas totalmente descartável para veículos em centros urbanos) e se concentrar nos gases poluentes. É melhor um calhambeque poluindo pouco, e circulando precariamente, do que impedido de circular, pois isso só agravaria a corrupção.

Em terceiro lugar, os centros urbanos passariam a distribuir biodiesel puro, e não esse coquetel insignificante de 3%.

Em quarto lugar, a Petrobras teria que ser colocada contra a parede: ou muda o refino, ou o governo convoca uma licitação internacional para outros refinadores se instalarem no país — o que não ficaria só no diesel, obviamente. É preciso que a mentalidade de competição chegue até o governo, pois esta é a sua função: gerir a concorrência no país. Com isso, o governo estaria dando o exemplo (já que é parte da Petrobras) e legitimando o ato de inspecionar os veículos. O que não podemos aceitar é que nada se faça para melhorar o combustível e se obrigue os carros a apresentarem uma ficha limpa.

Este governo teve a responsabilidade de constranger nossa liberdade em 3 questões relativas ao uso de veículos. Primeiro, a carta ou carteira de motorista que no passado se chamava 'habilitação', não habilita mais. Agora a cada 5 anos temos que voltar aos exames, como se tivéssemos esquecido os sinais de trânsito.

Segundo, o problema da tolerância zero com o consumo de álcool. É sempre o mesmo ideal de pureza emanando de uma burocracia ridícula. Pela nova legislação, um bêbado fica sujeito à mesma penalidade que um aperitiveiro — uma situação imposta a todos que viola os mais elementares conceitos de ordenação jurídica. Como se um chope fosse provocar o desatino de outros 10. Que falta de cultura, que falta de brasilidade e de estatura intelectual nesta miuçalha que se apossou do governo!

Quando olhamos a questão da inspeção veicular no resto do mundo, a wikipedia tem uma matéria sobre o assunto http://en.wikipedia.org/wiki/Vehicle_inspection verificamos que é um procedimento que varia de local para local: alguns países dispensam a inspeção de carros com até 3 anos de uso (o que é óbvio), outros o fazem de 2 em 2 anos, outros somente na transferência do veículo, e há ainda Estados como Flórida, Kentucky e Minnesota, que simplesmente descontinuaram o programa de inspeção veicular. Mas, em qualquer caso, esses países obrigam os carros a utilizar combustível sem chumbo, e estão cada vez mais mobilizados a reduzir as emissões poluentes — assunto que depende muito mais dos laboratórios de pesquisa do que dos motoristas.

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