Em 26 de Abril de 2012, a decisão de referendar as cotas raciais para as universidades brasileiras foi aceita no Supremo por unanimidade. E não deixa de ser estranho que um assunto tão polêmico tenha sido aceito por unanimidade em um Tribunal sabidamente heterogêneo.
O problema “racial” das cotas foi discutido e combatido por Roberta Kaufmann e Yvone Maggie. Porém, não se discutiu a questão das cotas associada ao mérito em nossa sociedade. Sob este ponto de vista, as cotas alteram a noção de mérito. Elas querem dizer que o mérito pode ser alcançado por uma oportunidade garantida por um privilégio, concedido como uma reparação a uma situação social que tenha retirado o poder de competição pela marginalização de uma parte da sociedade assistida pelas cotas. Mas se a sociedade humana é tão velha quanto as injustiças e esta hipótese nunca foi ventilada antes, não seria de desconfiar de que o mérito é impossível de ser obtido por privilégio? Não seriam enfim as cotas uma destruição do próprio mérito sob o manto de acomodar os desfavorecidos socialmente? Ou o mérito é inseparável da espécie humana do ponto de vista cultural e, portanto, impossível de ser descartado sem que se crie, involuntariamente, um preconceito social endereçado aos favorecidos pelas cotas?
Desconheço alguém que possa admitir a hipótese de um paciente acometido de grave doença que prefira escolher um cirurgião com menos mérito que outro. Ou, um consumidor, que tendo de escolher entre diversos produtos com o mesmo preço, vá optar pela marca que lhe pareça menos meritória, isto é, mais suscetível a defeitos de qualidade. Levado ao limite, o mérito não é uma invenção – mas um ingrediente civilizatório, presente nas obras de arte e nas conquistas de toda a história da humanidade. O mérito nos protege da pior escolha e, por conseguinte, do temor do fracasso. Isso tudo seria banal, não fosse o fato de que, no Brasil, o mérito é constantemente vilipendiado. Vemos o mérito preterido dentro de nossas instituições. Em nossa crítica social, frequentemente encontramos o argumento de que tal pessoa não adquiriu seus predicados por si mesma, mas por pistolagem, QI, fraude, etc. Isso é tão comum, que vivemos permanentemente antenados para a possibilidade de sermos enganados. Nossas relações sociais, em todos os níveis, são constantemente eriçadas pelo receio, pela desconfiança, pela disjunção.
E, quando, historicamente, uma mesma parte da brasilidade tem sobre si um passado manchado pela discriminação, achar que esse passado pode ser reparado com a distribuição de privilégios, é um atentado contra os princípios da Justiça e os fundamentos do Direito. Mas isso não me surpreende, porque não é difícil entender que o princípio da igualdade possa ser vilipendiado. Salvo exceções, somos uma sociedade cujo Estado se especializou em produzir regras para o triunfo dos menos meritórios na competição pelos cargos. No parlamento, nossos representantes são um exemplo de que o nosso sistema político foi construído em torno do sistema de cotas e não de méritos. Para eleger um parlamentar, o Estado criou um modelo tal que um político demagogo, corrupto e esperto tenha mais vantagens que um político sério e honesto, como bem o demonstra o palhaço eleito em 2010 para o Congresso Nacional, que forneceu a ‘cota’ de votos para eleger um procurador envolvido em fraudes com a Justiça. Nosso sistema eleitoral é um sistema de cotas.
E, no Supremo Tribunal Federal, os senhores ministros também têm entre seus pares alguns escolhidos pelo sistema de cotas, que ali chegaram sem experiência previa com a magistratura e com matéria constitucional, e tampouco apresentavam predicados intelectuais em matéria de Direito que os habilitasse à importância do cargo. No limite, nossa sociedade já é um sistema de cotas. Vejamos outros exemplos.
Há poucos anos atrás, uma lei instituiu a obrigatoriedade de as empresas de médio e grande porte reservar vagas para deficientes físicos. O assunto foi tratado dentro da dinâmica da inclusão social. Nossa política indigenista foi criada com base na distribuição de cotas do território nacional aos índios, em proporções muito acima de suas necessidades, mas utilizando o raciocínio de que as áreas indígenas seriam grandes reservas florestais, embora ninguém obrigasse os índios a mantê-las. Igualmente, a política para os quilombolas foi tratada como um sistema de cotas territoriais. Quem lê o livro ‘Populações Meridionais do Brasil’ de Oliveira Vianna, fica perplexo ao saber que grande quantidade de quilombos era de ex-escravos que se reuniam em bandos e viviam como salteadores de estradas.
Seus acampamentos se transformaram em vilas permanentes, abandonadas, e com precários contatos com a civilização. Hoje são objeto de estudos de nossos antropólogos empregados no licenciamento ambiental. Aqueles que gostam de falar de reparação da escravidão, como um direito dos afrodescendentes, não aceitam comentar os escritos dos autores que não tratam dela com as tintas do coitadismo.
A necessidade de reparação não existe neste país nem para fatos ocorridos ontem. Quando houve vazamento no campo de exploração da Chevron, a primeira coisa que o MP fez foi aplicar uma multa relativa à esperada reparação que o óleo causaria em nossas praias, provocando sérios prejuízos em nossa indústria pesqueira, turística e demais atividades litorâneas. O problema é que o óleo não chegou ao litoral. Mas, e se chegasse? Alguém acredita que o Estado brasileiro iria distribuir a multa para todos os donos de estabelecimentos prejudicados e pescadores impedidos? Creio que espontaneamente o dinheiro da multa iria abastecer o déficit do tesouro, como sempre acontece com nossos tributos e taxas.
Por isso não me surpreendeu a unanimidade do STF em adotar as cotas raciais. Em um país segregado pelos privilégios, pela desigualdade legal protegida em nome do princípio do direito adquirido, as cotas nas universidades são apenas mais uma mancha na estrutura social do país. As desigualdades sociais não são mais um legado do passado – mas políticas instituídas no presente. Os brancos pobres que o digam.