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domingo, 10 de novembro de 2019

Genealogia do Caos

Carlos U Pozzobon


A mudança na interpretação da prisão em segunda instância faz parte da acumulação de fatores que permitiram uma virada conjuntural nas práticas legais. Mas o que aconteceu para que chegássemos a este ponto?

Quando a luta pelo impeachment indicava que a pressão popular era a força revigorante da democracia, as coisas começaram a dar para trás. Rastrear a série de eventos que nos levaram à liquidação da Lava Jato permite esclarecer por que caímos na cilada do retrocesso:

O primeiro evento foi a eleição presidencial, que estabeleceu um novo marco pós-PT. A Lava Jato elegeu Bolsonaro com a esperança de que ele tivesse um comportamento público condizente com as forças atuantes nas campanhas anti-PT.

O segundo evento foram as publicações do The Intercept, que serviram de combustível para as forças antilavajatistas se posicionarem na defesa da impunidade elevando o coro do “onde já se viu juiz falar com procurador”, num país em que, justamente, todos os juízes falam com procuradores.

O terceiro evento foi a série de interrupções nos processos judiciais sob a alegação da ordem de apresentação da acusação e defesa de delator e delatado. Entendeu o STF que a formalidade de ordem era mais importante que o trabalho executado, e que, não obstante ter sido apresentado na primeira instância, não poderia ser corrigido pela plêiade de recursos exaustivos e sobrepostos, e tampouco pelo julgamento na segunda instância com base em material desconhecido da defesa, se ela invocasse prejuízo material do delatado. Como se fosse um prejuízo irreparável, arrumou-se a artimanha legal para avançar contra todo o trabalho anticorrupção no país.

O quarto evento foi a insurgência da militância togada com absoluta segurança para destruir a segurança jurídica do país. O caso do COAF se insere neste avanço sobre o executivo que termina aceitando que o principal órgão de investigação de atividades financeiras servisse de peteca de ministérios, a partir da denúncia de irregularidades na declaração do IR de Gilmar Mendes.

O quinto evento foi a pá de cal sobre a erosão em marcha da ordem constitucional. Sob a alegação de necessidade de proteção mútua, Dias Toffoli interrompe as investigações em curso dos processos de uma nominata de mais de cem pessoas agraciadas com a suspensão de investigações do MP para fazê-las reféns da orquestração togada. Na nominata, os nomes da cabala que haveriam de liquidar com tudo o que se conseguira, incluindo Gilmar Mendes e Flávio Bolsonaro.

Na direção oposta, nada disso estaria acontecendo se houvesse resistência do executivo com uma declaração firme de Bolsonaro contra a conspiração em marcha. O Brasil gosta da retórica de “check and balances”, mas na hora do indispensável CONTRAPESO, o que se viu foi um “silêncio eloquente” do Presidente da República, que não sabe o poder que tem, ou não sabe como agir em uma democracia EM CRISE. E não faltam os “justificadores da imobilidade”, as cassandras do “ele está certo” para argumentar que estando uma proposta de reforma da previdência no Congresso, ele deveria se omitir para não melindrar uma reforma calculada para dez anos, que é mais do Congresso do que dele, como se a omissão sempre pudesse ser justificada por uma dependência que só existe para justificar a inépcia.

Se Bolsonaro tivesse convidado Modesto Carvalhosa para uma conversa no Planalto (que nunca o fez), e também figuras do VemPraRua e MBL (que nunca foram apesar de elegê-lo), acompanhados por Alcolumbre e Maia para um piquenique político corriqueiro de falar à toa, como ocorre cotidianamente em Brasília e, como fator surpresa, os colocasse em uma sala fechada para uma conversa com o maior número possível de fardados do Alto Comando do Exército, as coisas poderiam mudar se os militares anunciassem em tom marcial uma declaração de guerra contra a corrupção togada com um ultimato em alto e bom som para que em uma indireta mais direta que direita, exigisse que o Legislativo assumisse o seu papel constitucional de colocar um termo no abuso confuso e difuso da interferência do STF nos demais poderes da República, esperando que pela reação dos parlamentares no momento de inflexão do discurso, eles entendessem que... sim, estariam tratando do pedido de impeachment do convidado octogenário ao lado, ou... as Forças Armadas não se responsabilizariam pelo que poderia ocorrer, incluindo a sobrevivência do próprio parlamento. Blefe? Não há política sem uma dramaticidade conjuntural que a justifique.

Também podemos admitir que o recado fosse dado em tom mais suave. Abstendo-se de qualquer ação, lavando as mãos como Pilatos, o governo Bolsonaro entra no rol daquilo que no jargão do mercado financeiro se chama de “precificado”. A Lava Jato foi precificada. O maior perdedor não foi só a justiça brasileira, mas também o seu ministro. Sérgio Moro não tem mais o que fazer no governo. Pode dar seus esforços por encerrado. E preparar uma reviravolta política lançando-se candidato a presidente em 2022. É o único caminho que lhe resta. E é o que queremos para nos livrar do pesadelo da volta do PT.