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domingo, 30 de outubro de 2022

O pesadelo eleitoral de 22

Carlos U Pozzobon

Se não me engano, foi Tavares Bastos que no século XIX disse que a política brasileira as vezes se parece com uma galeria de estátuas mutiladas. O que se viu este ano não tem precedentes na história da República. A começar com um candidato muito seguro da vitória pela exposição na mídia, com um histórico de cabriolas insultantes tanto a Lula como a Bolsonaro. Me refiro a Marco Antonio Villa, o professor de história mais próximo do surto verborrágico outrora tão valorizado nas tribunas. No passado, se elegeria senador. No presente, não foi eleito. Cito Villa porque percebi que o eleitorado rejeitou todos os candidatos com algum verniz intelectual. E não só na oposição: no Bolsonarismo também. Roberto Motta, engenheiro de formação e especializado em segurança pública, defensor de Bolsonaro no Rio, não se elegeu também. Estava deslocado da métrica obtusa que coleta votos.

José Serra, ex-tudo, não conseguiu o mandato downgrade de deputado federal. O PSDB percorreu a sina do suicídio político a partir de 2014, especialmente com a chegada de Dória, que dando uma rasteira em Andrea Matarazzo, o candidato natural a prefeito em 2016, deixou-o tão humilhado pela falta de apoio da direção do partido que caiu fora amargurado. Dória teve uma ascensão meteórica e acabou sendo traído pela ambição desmedida. Jogou fora a reeleição certa em Sampa, mobilizou o baixo clero do Partido, conquistou a vaga de presidenciável e, por fim, foi traído pela conspiração da gerontocracia que mais uma vez se curvou ao PT, e saiu de cena de mansinho, deixando o PSDB na irrelevância de seu reboquismo. Joyce Hasselman, rompida com o bolsonarismo, migrou para o PSDB mal sabendo que estava entrando em uma casa arrombada: foi descartada.

Simone Tebet protagonizou, juntamente com Ciro Gomes, os maiores fiascos eleitorais. No segundo mandato como senadora, prestes a ser mandada para casa como ocorreu em 2018 com Ana Amélia no RS, Simone esqueceu o que disse de Lula e do PT no primeiro turno e se transformou em cabo eleitoral dele, algo que demonstra que pessoas inteligentes não estão isentas de cometer burrice política, como advertiu Jean-François Revel. Acredita em ganhar um ministério. Mas tudo indica que vai ser uma embriagues passageira que ao fim, ou entra para o PT e pede para que “esqueçam o que eu disse”, ou sai do governo envergonhada como Joyce Hasselman.

As eleições destravaram muitas coisas que não estavam no modo de pensar da ciência política do país. Pazuello foi o segundo deputado com mais votos no Rio de Janeiro sem nunca ter sido político, e com uma exposição midiática tão negativa que qualquer racionalista político diria que não teria votos. Quem elegeu Pazuello? Os evangélicos? Duvido. Eles tem seus próprios pastores candidatos. A resposta deve estar na família militar, numerosa no Rio e uma das mais ativas presenças do bolsonarismo das redes sociais. Antigamente militares eram proibidos de votar. A lógica era de que uma instituição alicerçada na disciplina não poderia sequer mencionar preferências políticas. O populismo se encarregou de liquidar com a lógica.

O terceiro caso de derrota em que os derrotados não conseguiram entender o que se passou ocorreu com o partido Novo. De 12 deputados se reduziu a 3. Felipe D’Ávila teve menos de 600 mil votos. O que aconteceu?

Uma sociedade que vive para o espetáculo, que tem um povo atrelado à cultura do entretenimento, adestrado para o hedonismo como compensação para a vilificação que lhe é imposta na mais desavergonhada descompostura ética pós-petrolão, pode ser sensível a apelos morais?

Muito pouco. Só em alguns nichos se encontra a disposição para conferir dignidade a princípios e prudência em escolhas. O resto foi tudo dominado. E esta dominação é exatamente esta: a política passou a ser um puxadinho da corrupção legalizada no orçamento secreto e financiamento partidário, os dois venenos que danaram a política brasileira sem remissão. Ninguém está preocupado com a moralidade pública quando ela se mostra um obstáculo ao próprio futuro político do candidato. A derrota do Novo confirma que o estoicismo administrativo não produz resultados em uma população niilista.

Os dois grandes polos vitoriosos de um Brasil sem nenhum futuro constituem o petismo e o bolsonarismo. O petismo através da clerezia acadêmica, os sindicatos e organizações sociais de bairros, os índios de fantasia, os quilombolas de batuque e supostos sem-terra, na verdade garimpeiros da propriedade alheia, as ONGs, a parte do funcionalismo gazeteiro, todos escoltados pela tradição intelectual anti-americanista e anti-capitalista latino-americana.

O bolsonarismo ficará enraizado em certas elites do funcionalismo amedrontadas com o bolivarianismo, os evangélicos sempre atentos ao tilintar das moedas que vem com Deus Acima de Tudo, o conservadorismo de rosário e incenso, o estatismo militar, espécie de socialismo no armário que recusando as privatizações não se constrange em vestir a máscara de liberal, incapaz de esboçar uma estratégia de desenvolvimento que não seja a simples ocupação do poder, onde o verde-amarelismo que cerca o presidente demonstrou em 4 anos que não passava de uma elite de aproveitadores, espelhando o petismo e complementando-o no “deixa estar para ver como é que fica”.

Foram estas duas grandes maiorias que se apossaram das redes sociais e se consolidaram nas eleições. Não houve discussão dos problemas nacionais. A preocupação dos candidatos era com o adversário e não com o Brasil. Tudo se passou como se o país estivesse pronto, como as sociais democracias europeias, e restasse apenas questiúnculas secundárias. Em lugar de discutir a cozinha, nossos candidatos se limitaram a falar em como arrumar a mesa do banquete. O angu que vai ser servido é o mesmo de sempre.

Um país que tem 96% do orçamento empenhado em despesas permanentes pode se sentir protegido contra os abutres das verbas públicas se não fosse o caso dos estragos de nosso sistema político ultrapassarem a casa dos 4% restantes. Porque nos 96% estão os abusos, os contratos dos laranjas, as mordomias e privilégios de nossa segregação social organizada que as eleições foram capazes de mostrar que são não apenas intocáveis, como principalmente, intratáveis e inquestionáveis por aqueles que tinham obrigação de se manifestar sobre isso. Não se fala em reformas, não se fala em mudanças, não se fala em desenvolvimento. Tudo o que se pretende e pratica é ocupar o poder e depois distribuí-lo entre os camaradas de jornada.