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sexta-feira, 10 de agosto de 2012

A crise que virá

Carlos U Pozzobon

Escrevo este artigo em 10 de agosto de 2012. Faço questão de registrar a data para defender meu ponto de vista com relação à crise que se avizinha. Ou confessar meus erros altivamente se os rumos dos acontecimentos forem em direção oposta. Não sabemos quando o descalabro da inflação irá forçar a população a uma mudança de atitude. Sabemos apenas que ela virá, e com ela uma nova fase no calvário das calamidades brasileiras recicláveis.

Wilson Martins, em sua obra monumental ‘História da Inteligência Brasileira’, no tomo VII, ao se deter nos acontecimentos dos anos 60, no Brasil, não consegue esconder sua perplexidade. Citando um artigo seu de 1959, advertia: “O nacionalismo e, em particular, o nacionalismo primário, sentimental e intolerante [...] transformou-se, já agora, numa espécie de grave neurose brasileira; mais ou menos latente em toda a nossa história, ele aparece por irrupções bruscas, como as epidemias, e causa tantos males quanto elas. O Brasil sofre da mania de perseguição colonialista – é ela a responsável pelo nosso alheamento da realidade. Resultante de velho complexo de inferioridade – compensado e sublimado delirantemente pela criação de estereótipos os mais inconsistentes – ela alcança, neste momento da vida nacional, formas verdadeiramente patológicas, erigida que está em política, em programa da vida coletiva. É que uma grande parte do povo brasileiro deseja doentiamente preservar alguns valores vazios de conteúdo, agarra-se, justamente, por paradoxo, à constelação mental que caracterizava a sociedade luso-brasileira e deseja imobilizar o Brasil no instantâneo de um dos seus momentos históricos. Esse "velho País colonial", para conservar a terminologia de Jacques Lambert, opõe-se, com a força indestrutível da inércia, servida pela agressividade emocional, ao "País novo" e progressista, que compreendeu a permanência do Brasil sob as suas diversas fisionomias sucessivas e que responde às solicitações do momento em que vive. Se, até agora, entretanto, o "velho País colonial" representava a maioria absoluta, do ponto de vista demográfico, estamos chegando a um ponto em que as duas forças antagônicas tendem a equivaler-se e a partir do qual as correntes do progresso, da identificação com o seu tempo e com a "essência" brasileira começarão a prevalecer. A onda nacionalista que atualmente nos submerge bem pode ser a febre desse minuto culminante do conflito: explorada e mantida por interesses políticos que, precisamente, e por escárnio, nada têm de nacionais, nem de brasileiros, sua permanência e duração, seu alcance efetivo e a influência real que puder exercer decidirão, por muitos anos, do nosso destino coletivo".


A primeira onda de esquizofrenia veio com a Revolução de 30, especificamente a agitação nacional que culminou na morte de João Pessoa, candidato derrotado a vice-presidente nas eleições em que concorria com Vargas. João Pessoa foi assassinado em um crime passional em Recife em decorrência de uma tentativa de outro coronel estabelecer um governo separatista na Paraíba de onde era governador. Sua morte despertou o estopim da revanche política protagonizada por Getulio com o apoio de Minas Gerais. O cadáver de João Pessoa foi tribuna para a agitação política que se iniciou em Julho de 1930 e cujo féretro foi enviado de navio de porto em porto, onde sucediam-se comícios e quebra-quebra para condenar o governo, urdido como o verdadeiro conspirador para assassinar João Pessoa. O que se pode chamar de caráter esquizofrênico consistiu na mudança de opinião do povo que poucos meses antes havia eleito Julio Prestes e cujo tumulto arrastou as principais lideranças empresariais e agrárias reunidas na Aliança Liberal, com a finalidade de produzir mudanças no país, assolado pela crise de 29.


A nova febre de esquizofrenia ocorreu a partir dos anos 60 quando Brasília se transforma na nova capital. Como sabemos, foi a indústria automobilística que teve de dizer para Juscelino permitir a instalação de suas montadoras no Brasil para livrarem o país de sua penúria nas contas externas com a importação cada vez maior de automóveis. Juscelino negociou a autorização e concessão das fábricas com os empréstimos para construir a capital federal. Como se tratava de investimentos passivos, terminada a capital federal inicia-se o período de pagamento dos empréstimos ao FMI. Mas como pagar se foram investimentos inócuos e sem retorno? O governo João Goulart, empossado com a renúncia de Jânio, percebeu a cilada que tinha caído e não teve outra saída senão desvalorizar a moeda e render-se à inflação. Mas o que fez o mundo político de então? Foi procurar seu bode expiatório na sociedade produtiva, e encontrou as tais de remessas de lucros para o exterior como a grande fonte da inflação. Não foi Brasília e a gastança governamental que tinham atolado os brasileiros. Foi a indústria automobilística que, poupando o governo de ter de gastar integralmente com carros importados quantias extraordinariamente maiores, remetia as primeiras quantias ao exterior para amortecer seus investimentos. E toda a sociedade escabelava-se com a ganância dos grandes “trustes” como eram chamadas as grandes empresas internacionais, como a causa da pobreza e da carestia na vida do trabalhador.


Agora estamos prontos para o próximo episódio. O surto de esquizofrenia virá com a consequente inflação causada pela maior crise de gestão da história brasileira pela extensão da incompetência governamental aliada à corrupção que se confunde com as políticas públicas. Como venho alertando desde 2009, a Petrobras é uma dessas causas: com dívidas de 27 bilhões em 2007, já bateu em 130 bilhões em 2012 e corre ladeira abaixo. Mas isso não é tudo: as contas externas começam a dar sinais de déficit crônico. Com reservas de 360 bilhões de dólares, o Brasil poderá resistir mais algum tempo, mas não se sabe quantos anos para que retorne a passar o chapéu ao FMI depois de arrogantes discursos nacionalistas de alguns anos atrás. Considerando que as despesas com o passivo da Copa do Mundo de 2014 deverão equivaler a uma nova Brasília, e acrescentando-se as obras inconclusas que, portanto, não reverteram em produtividade na economia doméstica, como ferrovias, estradas, transposição do SF, portos e aeroportos, podemos prever o aparecimento de um ou mais bodes expiatórios focados nas empresas privadas como a causa da crise, sempre e invariavelmente livrando o governo da responsabilidade pelo descalabro gerencial do país. Alguns professores uspianos já estão dizendo que é um absurdo a indústria automobilística ter remetido para o exterior 1,2 bilhão de dólares em 2011. Essa é a atmosfera da culpabilidade que retorna como um fantasma na mente estreita brasileira. E o espírito para que uma grande mentira possa ter uma grande repercussão em poucos dias já existe. Considerando a forma como setores dos partidos esquizofrênicos trataram a falácia do Pinheirinho, podemos ter uma ideia de como uma fraude pode se espalhar na consciência nacional e servir de peneira para tapar o sol da pusilanimidade instalada em Ministérios Públicos e na grande rede mercenária ameaçada pela crise. A história brasileira tem sido uma constante perda de oportunidades pela escolha do governante errado na hora errada. Existe um Brasil arcaico que já não é mais o mesmo do tempo de Jaques Lambert, identificado na figura do enxadista, do favelado e do analfabeto. O Brasil arcaico de hoje está nos partidos políticos exaltados da base aliada, no corpo docente das Universidades, ONGs, Sindicatos e Movimentos Sociais. Ele não é mais a vítima, mas a parte mais atuante da sociedade, e exatamente por isso, a causa principal do fracasso social continuado das administrações petistas. A grande reação ao descalabro governamental virá com uma causa externa, secundária, mas que vai servir para o despistamento da real situação do país. Não sabemos sua real extensão e consequências. Podemos apenas prever que não serão tempos fáceis e que viveremos aos sobressaltos de decretos expropriatórios, manipulações grotescas do poder, aumentos descarados de impostos e taxas e – com sua indefectível marca registrada –, a corrupção humilhante garantida pela impunidade dos intocáveis já comprovada no episódio da Delta.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

A corrupção sistêmica

Carlos U Pozzobon

Por todos os lados se fala na corrupção. De repente, o Brasil descobre que a praga que infesta a Nação, desde o seu descobrimento, adquiriu uma proliferação tal que ninguém mais se sente confortável. A coleção de disparates sobre as causas da corrupção atinge proporções de festival de besteiras. Alguns praguejadores culpam o capitalismo, outros a ambição desmedida dos políticos, e há quem ache a corrupção uma inevitabilidade do gênio brasileiro.

Quando se analisa a sociedade, verificamos que existem espaços de troca em que a corrupção não tem vez: por exemplo, é impossível haver corrupção entre o comprador que compra para uso próprio e o vendedor proprietário. Portanto, uma sociedade de produtores e consumidores diretos não teria corrupção, isto é, duas pessoas que transacionam diretamente não têm como estabelecer um preço artificial.

Precisamos entender que para existir corrupção se impõe uma questão fundamental: entre aquilo que se compra e vende deve haver um representante, caso contrário, a corrupção inexiste. O representante pode ser um intermediário nas relações comerciais no mundo privado, que para isso toma todos os cuidados e auditagens necessárias a sua evitação, como pode ser o representante dos poderes públicos, que trabalham com o capital alheio, ou o chamado dinheiro público. Outra questão que favorece a corrupção é ambiental: ela é tanto maior quanto maior a burocracia de uma sociedade, cujas empresas têm seu gerenciamento forçado pelas normas do sistema político.

A corrupção pode, portanto, funcionar tanto no atacado como no varejo. No atacado, com o dinheiro público através de representantes envolvidos com grandes contratos: isso se denomina patrimonialismo. No varejo, pela ampliação da burocracia criada por leis e portarias que exigem mil coisas das empresas e indivíduos.

Tal não acontece em outras instâncias, como entre a empresa e o consumidor. Nas empresas que produzem bens de consumo de massa, a maximização do lucro é um fato que por si só reprime a corrupção. O lucro torna-se o próprio fator de vigilância e pressão sobre quaisquer arranjos que impliquem em sobrepreço. Enquanto o consumidor comprar com o preço mínimo, e enquanto a competição for um fato consumado a forçar os preços para baixo, a corrupção estará afastada, a menos que seja uma empresa suicida. O cálculo capitalista não deixa espaço para a corrupção. Porém, quando a relação capitalista migra para a esfera empresa-governo, os paradigmas mudam completamente.

Toda a empresa cujo lucro provém de escolhas, indicações, relacionamentos, contatos, conchavos, aparelhamentos, partidos políticos, organizações intermediárias, favores, parentelas, é uma empresa onde a suspeição de corrupção cresce com a conjuntura histórico-social.


Gerenciamento para o lucro e gerenciamento burocrático

Dois estilos de gerenciamento se impõem na conduta ética da sociedade: o gerenciamento para o lucro e o gerenciamento burocrático. Nos dias atuais, o gerenciamento para o lucro pressupõe um tipo de capitalismo minoritário: aquele da empresa com o mínimo de obrigações para com o aparelho governamental, além de um sistema tributário simples, direto e quase sem custos.

No gerenciamento burocrático, as coisas tomam dimensões que vão de um crescendo baseado em exigências governamentais, até a interferência direta. Todos os regimes totalitários são baseados em gerenciamentos burocráticos, e todos sem exceção são corruptos.

A razão é bastante simples: uma empresa estatal ou um órgão governamental não tem uma relação direta entre as fontes de receita e as de despesa. As receitas do governo são baseadas em leis tributárias, e as despesas não guardam proporção com as receitas, a não ser a exigência geral de que não sejam maiores do que as receitas, um preceito que a atividade política pode violar sem maiores consequências, e a criatividade fiscal fazer o resto do estrago. Quando a estatal é uma produtora, sua sustentação fica garantida pelo monopólio, a única forma de ajustar as receitas com as despesas: com esta liberdade, a corrupção pode ser uma prática constante, como de fato temos visto ao longo da história.

Assim, se a entrada não guarda uma proporção com a saída, todo tipo de injunção é possível. Em qualquer órgão de governo gasta-se baseado em critérios completamente alheios ao mercado, razão pela qual todos os amigos do estatismo, não importa a variante ideológica que assumam, encontram seu ideal de liberdade nas estatizações. Livres da exigência racional da despesa vinculada a fontes de receitas, eles podem se dedicar ao altruísmo moralista do bem-estar social, dos privilégios consentidos como autorreconhecimentos, da suntuosidade com o dinheiro alheio, da concessão em troca de apoio político, da generosidade com reivindicações sociais e trabalhistas. É o que o falecido Emil Farhat chamava ‘O Paraíso do Vira-bosta’ [T. A. Queiroz Editor, 1987].


O Sócio Oculto

A terceira categoria de organização social em que a corrupção se insere é aquela em que as exigências burocráticas ultrapassam a medida do suportável pela empresa competitiva. O estado passa de agente regulador a sócio oculto não declarado da empresa. Este é o caso brasileiro. Empresas privadas no Brasil, independentemente do fim a que se destinam, têm sempre um sócio indesejável, atrapalhado, volúvel, genioso, maléfico e usurpador. Para se precaverem contra associação tão deletéria, as empresas precisam de um grande contingente de pessoal, especialistas em direito tributário, previdenciário, trabalhista, sindical, ambiental, e por aí afora. Esquadrões de fiscais vigiam as empresas desde a colocação do alvará em lugar próprio e visível até os recibos de cartão de ponto de funcionários, as palavras proferidas pelos chefes capazes de causar danos morais, a incidência de luz solar e os possíveis efeitos ambientais da insalubridade, e centenas de pequenas coisas que não fazem parte das relações pessoais de empregados e patrões, tornadas sem efeito no arranjo social do contrato de trabalho, mas fundamento da existência do sócio invisível, da burocracia imposta com pesadas multas.

Assim sendo, se a burocracia é um conceito que explica porque uma empresa privada só pode se estabelecer consentindo em ter um sócio chamado governo, é muito natural que esta empresa privada perceba que a burocracia que lhe parasita sufocantemente pode ser a sua fonte de receitas superfaturadas e lucros extraordinários. Então uma parcela significativa do empresariado percebe que a única solução para o problema do governo como burocracia é fazer do governo o mercado. E estabelece uma relação de troca: o governo garante seu negócio e ele garante a burocracia do governo. E a sociedade passa a pagar nada menos que preços triplicados para esse arranjo institucional. São os cartórios que abundam em nossa realidade empresarial.

Nosso sistema supõe que o governo tenha toda a liberdade de criar taxas, disposições tributárias, e o que bem entender, desde que se comprometa em arrumar mercados, e os políticos não se omitam nas diligências para tal: desde os extintores de incêndio, aos seguros obrigatórios, as taxas de juro, as inspeções veiculares, as incontáveis indústrias fornecedoras do governo todas elas garantidas pela obrigação legal. E assim, se uma lei garante a própria existência do mercado, ele se chama governo, e não existe razão para a empresa não atender aos caprichos da burocracia associada.

Em tal ambiente, as empresas buscam uma compensação desempenhando o papel de fornecedoras dos órgãos públicos em uma economia em que quase 50% é consumida pelo próprio estado ou por seus agentes. Esse ambiente de promiscuidade social (promiscuidade entre um capitalismo avançado levado por uma classe de administradores profissionais e o semicapitalismo estatal, carregado por uma classe de agentes governamentais com superpoderes) forma as condições para a corrupção no mercantilismo das conveniências.

A corrupção pode ser moralmente indesejável, e de fato é, mas ela não é eticamente vencida com discursos, somente com atitudes. Fica na dependência das figuras de proa do sistema político. Com a cama pronta, se um governante honesto é eleito, ela pode ser contida em algumas iniciativas e até passar despercebida. Mas quando o próprio chefe de estado impede por decreto que o TCU investigue o destino do imposto sindical, a senha está dada, a corrupção corre frouxa como um abracadabra em que vão entrando no jogo todos os setores que sabem que a impunidade foi garantida e que tudo não passa de jogo de cena. A honestidade, nestas condições, é apenas um atributo pessoal, nunca uma exigência de decência social.

E não se enganem, uma sociedade é tanto mais refém da corrupção quanto menos lucidez possui para superar seus dilemas, quanto menor for sua capacidade intelectual de propor soluções para sua própria regeneração. Quando o problema passa a ser sistêmico, a corrupção só poderá ser saneada alterando as regras do sistema. A atual reclamação da frivolidade da oposição tem em mente esta verdade.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Como funciona o Fascismo Auriverde

Carlos U Pozzobon

O propósito oculto — o fim último não revelado — é arrumar um encosto para os afilhados políticos que irão guarnecer os currais eleitorais com um emprego parasitário, ou então certificar empresas para atender a uma nova regulamentação criada compulsoriamente. A atividade principal do político é “produzir empregos e sinecuras em massa, para assim poder barganhar oportunidades e favores com seu eleitorado. Para ele, a empresa estatal é a grande invernada onde engorda o seu gado boca-de-urna, o curral onde poderá ajeitar o seu rebanho votante, a pastagem sem dono onde apascenta — com despesas pagas pela nação – as reses correligionárias que, docilmente, de tempos em tempos, dão a safra de votos que o mantém, sobrenadando, airoso e vistoso", na vida públicaFARHAT Emil. O País dos Coitadinhos. 1967, p. 210 .

Mas tudo tem de começar pela cartilha dos bons princípios das necessidades humanas. Inicialmente, definem-se rosários de boas intenções em torno de um tema carregado de importância vital para a humanidade, para a brasilidade, para a totalidade dos cidadãos, e, se possível, para o destino do planeta. Aí sim temos um toque de dramaticidade para deslanchar as correias do inchaço estatal. É assim que a política começa. O fim já se sabe, mas os bons propósitos precisam estar purificados pelo consenso universal.

Considere a questão da água: nada mais importante para a humanidade do que a água. No Brasil, já sabemos, alternam-se regiões com abundância a outras com escassez. Mas a escassez é fruto da incompetência governamental, embora essa evidência não possa ser falada, e, bem escondidinha, deve ser o primeiro parágrafo da grande campanha pela regulamentação. Ou então iniciam-se considerações de ordem internacional.

Não há cultura sociofascista que não tenha predileção pela análise internacional como fundamento. Portanto, é preciso situar as estatísticas de oferta de água e das terríveis privações de povos que vivem com recursos exauridos ou em constante escassez. Os outros sempre servem de empurrãozinho para comover os correligionários.

Tudo começa com a mobilização costumeira. Primeiro, os áulicos da colocação do problema desfilam pela imprensa. Depois, começam os discursos no Congresso. Por último, cria-se uma proposta de lei para resguardar os interesses nacionais com o tema e disciplinar seu uso. Está pelada a coruja. Surge a Agência Nacional de Águas. Os carrapatos correm aos seus postos succionantes. Mas tudo isso ficaria sem importância se não se criasse um imposto para a exploração da água nas propriedades rurais, com o argumento de escassez de água nos depósitos subterrâneos. Assim, o imposto disciplina seu uso, e, naturalmente, arrecada dinheiro para o governo sustentar sua burocracia. Mas, e quando faltar água? Será que alguém acredita que com o estoque de impostos o governo vai repor a água do subsolo de Cacimbinhas?

Bem, para o comum dos mortais, brincadeira tem hora. Agora, o terrorismo intelectual da escassez de água tomou conta do país. Como alguns centros urbanos estão sem novas fontes de coleta d’água, a população fica ao léu. Cidades como São Paulo precisam ir buscar água cada vez mais longe. Mas nada disso chegaria a essa gravidade se não fosse a incompetência dos órgãos públicos. Para drenar o dinheiro no desperdício não há desacerto, já para se antecipar ao futuro, não há concordância possível.

Nos anos 60, em plena seca, técnicos israelenses descobriram no subsolo do Piauí 5 baías da Guanabara em aquíferos. De lá para cá pouca coisa foi feita para dirimir a seca do nordeste, que, com a patifaria política, se transformou em indústria rendosa através do DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra a Seca). Mais tarde, se descobriu o aquífero Guarani, um mega depósito subterrâneo ocupando a metade da América do Sul, que não se esgota nem a pau, mas que no entanto rendeu em 2008 para o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), órgão vinculado ao Ministério de Minas e Energia, a fabulosa soma de R$ 857 milhões, 50% a mais do que em 2007 O Estado de São Paulo, 22/03/09, caderno H4, correspondentes às 789 concessões de lavras de exploração comercial da água.

Isso garante a participação brasileira em gororobas internacionais patrocinadas pela ONU, como o Congresso Mundial das Águas de Istambul, onde uma hidropônica delegação de políticos e burocratas se refestelou no plenário do sonífero discurso das carências humanas, para se deleitar com o turismo de ocasião. (Fosse o país sério e preocupado com as pessoas sem acesso à água, como rezam as cartilhas da ANA e da ONU, o governo teria enviado seu representante da embaixada brasileira na Turquia, reservando o resto para gastar com os “sem-água e sem-saneamento”). Segundo divulgou a imprensa, no Congresso Mundial das Águas de Istambul participaram 38 mil pessoas de todos os países. E o que se tirou de proveito para a humanidade que já não se soubesse pelos institutos científicos das tantas universidades que pululam por aí? Neca dulcineca. Apenas palavreado.Eis aí por que os americanos odeiam tanto a ONU!!!

Mas qual é a função da ANA? Seu site não poderia deixar mais claro: “A Agência Nacional de Águas tem como missão implementar e coordenar a gestão compartilhada e integrada dos recursos hídricos e regular o acesso à água, promovendo o seu uso sustentável em benefício da atual e das futuras gerações”. Este faz de conta é a própria cultura do fascismo auriverde. Será que alguém acredita em um governo que não é capaz de tapar os buracos visibilíssimos das estradas consiga promover o uso sustentável da água em "benefício das gerações futuras"? Pois quando se fala em futuro no Brasil, puxe o talão de cheque do bolso, porque vem imposto. Esta é a noção de futuro auriverde, ou de país do futuro.

Ou seja, o argumento do governo vem como um pensamento nacional de que o Estado é o guardião da nação. Mas sua contrapartida é tão somente a cobrança de impostos para pagar salários e serviços do tipo 'estudos das bacias hidrográficas', 'cadastro nacional de barragens', 'cadastro nacional de usuários de recursos hídricos', 'certificado de avaliação de sustentabilidade da obra hídrica', etc. Que prova mais contundente de fascismo que a obsessão pelo cadastro? Nosso primarismo é antediluviano: acredita-se que documentos sobre um ente nacional, como as barragens, possam servir para que elas sejam melhores, desde que o desfile de carimbos e certidões assim o atestem.

Na visão oficial, o discurso é recheado de lugares comuns, como por exemplo: “um aspecto marcante do nosso tempo é a crescente pressão sobre ecossistemas como florestas, áreas úmidas e solos, responsável por desencadear mudanças amplas e sem precedentes nos sistemas de suporte à vida da Terra".

"Soluções inovadoras são necessárias para desafios complexos. Uma das principais respostas do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) para tais desafios é o processo GEO (Global Environmental Outlook). Trata-se de uma abordagem abrangente e integrada de análise, registro e avaliação das condições ambientais relacionadas a determinado espaço geográfico ou tema, que permite operar nas mais variadas escalas, da municipal à global”. Ou então: “A água não é somente um recurso crítico em termos de segurança humana e ambiental, mas oferece também grandes oportunidades para novos avanços em termos de desenvolvimento sustentável.” (Geo Brasil – Recursos Hídricos, p. 13). Foi essa redundância do tipo água-morna que sucumbiu o Império Soviético.

No final dos anos 30, dizia-se que o Brasil havia estatizado o subsolo restando apenas as águas de superfície e o ar. Nos anos 60, a estatização causou a tragédia (hoje totalmente esquecida) da navegação de cabotagem, por cujos dutos fluíam as riquezas nacionais e que estrangularam o desenvolvimento do país por mais de 30 anos. E hoje se completa a estatização controlada das fontes d'água. Dentro de alguns anos, nossos manda-chuvas vão inventar um jeito de melhorar o irrespirável ar dos centros urbanos com alguma agência nacional dos ares, alguma coisa muito parecida com a das águas, pois não faltará a experiência legisferante desta, que tudo fez para deixar os produtores rurais à míngua. É só começarem a falar em melhorar o ar do país, combatendo as queimadas, a fumaça das emissões, que vem órgão público. E, claro, um impostinho adicional para os fumantes.

Este é um ciclo do fascismo auriverde. Ele se baseia na premissa de que cabe ao Estado regular o uso de um bem comum a todos os brasileiros. Não se supõe que o acesso aos recursos hídricos seja feito por associação espontânea dos interessados, ou das comunidades e poderes locais. É preciso a mão regularizadora do governo federal para dar legitimidade ao seu uso. E tome burocracia e impostos. Ao brasileiro só resta a resposta que todos os seres humanos dão nas circunstâncias de serem cobrados por impostos que não têm volta, ou que são calcados no absurdo estatizante: mentir, fazer de conta, dissimular, subdeclarar, subfaturar, exercer plenamente seu bifrontismo.

A cobrança dos recursos hídricos foi estabelecida na lei 9.433 de 8 de janeiro de 1997, mas somente implementada dez anos mais tarde. Dizia a lei que a “cobrança pelo uso de recursos hídricos objetiva:

  1. reconhecer a água como bem econômico e dar ao usuário uma indicação de seu real valor;
  2. incentivar a racionalização do uso da água;
  3. obter recursos financeiros para o financiamento dos programas e intervenções contemplados nos planos de recursos hídricos.”

Se por “programas e intervenções” entendermos o papelório de sempre, aí sim está tudo justificado. Mas no artigo 21 da mesma lei, vem a disposição sobre a cobrança:
“Na fixação dos valores a serem cobrados pelo uso dos recursos hídricos devem ser observados, dentre outros:

  1. nas derivações, captações e extrações de água, o volume retirado e seu regime de variação;
  2. nos lançamentos de esgotos e demais resíduos líquidos ou gasosos, o volume lançado e seu regime de variação e as características físico-químicas, biológicas e de toxidade do afluente.

Art. 22. Os valores arrecadados com a cobrança pelo uso de recursos hídricos serão aplicados prioritariamente na bacia hidrográfica em que foram gerados e serão utilizados:

  1. no financiamento de estudos, programas, projetos e obras incluídos nos Planos de Recursos Hídricos;
  2. no pagamento de despesas de implantação e custeio administrativo dos órgãos e entidades integrantes do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.

§ 1º A aplicação nas despesas previstas no inciso 2 deste artigo é limitada a sete e meio por cento do total arrecadado.
§ 2º Os valores previstos no caput deste artigo poderão ser aplicados a fundo perdido em projetos e obras que alterem, de modo considerado benéfico à coletividade, a qualidade, a quantidade e o regime de vazão de um corpo de água.”

Por quinhentos anos o brasileiro não precisou pagar impostos pelo uso da água: era entendida como um bem comum. Agora não: bem comum passou a se chamar governo. Ultimamente vigora o princípio de que a água é um “bem econômico e por isso se deve dar ao usuário uma indicação de seu real valor” (artigo primeiro acima). Que discurso é este? Quando é que a água não foi um bem econômico? E o que significa “dar ao usuário a indicação de seu real valor”? Isso é uma confissão de que sendo um bem, o povo que pague impostos, pois os bens pertencem ao Estado e essa coisa de propriedade privada que vá para o inferno. E com isso Brasília regurgita na satisfação de mais um órgão público para apadrinhamento político, com altos cargos, na sempre crescente onda tsunâmica de taxação.

Os acontecimentos posteriores para implementar esta legislação são bizarros. Os técnicos do DAEE visitam as propriedades rurais e inspecionam as fontes d'água. Se encontram um poço não cadastrado, inicialmente dão 30 dias de prazo para que a situação 'seja regularizada'. Este eufemismo significa que o agricultor tem que conseguir uma 'outorga'. Se a água for usada para plantação, piscicultura e quetais, a coisa é mais complicada: é preciso procurar um profissional com registro no CREA para assumir a responsabilidade pelo empreendimento. Isto pode custar até R$25 mil reais. E se a intimação for desrespeitada, a multa pode iniciar em R$1.474,73, podendo ir subindo para até R$4.635,73 por dia (OESP 2/3/09). Um piscicultor em São Miguel Arcanjo teve que fazer um projeto, com levantamento planialtimétrico, topográfico, e estudo da vazão de um riacho. Custo estimado com a burocracia: R$15 mil. Mas como tinha suprimido a vegetação da chamada mata ciliar, foi multado em R$2,4 mil. Teve também o caso de um plantador de batata que, multado em R$2 mil, pagou e continuou usando a água para a irrigação. Pensava em livrar-se do fisco líquido. Recebeu outra multa de R$7 mil e mais uma de R$150 mil, além de processo por crime ambiental. O batateiro quebrou e deu no pé.

A questão ambiental é dramática. Se você tem uma área próxima a um lago, desmatada desde o século XIX, você pode ser acusado de ter desmatado a mata ciliar. Poderá provar sua inocência, sem dúvida, mas ao custo de muito vai-e-vem na burocracia, outro tanto na justiça e incontáveis prejuízos, se você depende de investimentos urgentes. A questão da água só piorou o Brasil. Enquanto isso a burocracia se refestela com mais dinheiro para o caixa (d'água) dos cartórios.