Translate

Mostrando postagens com marcador Carlos U Pozzobon. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Carlos U Pozzobon. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Mérito e Cotas no Sistema Brasil

Carlos U Pozzobon

Em 26 de Abril de 2012, a decisão de referendar as cotas raciais para as universidades brasileiras foi aceita no Supremo por unanimidade. E não deixa de ser estranho que um assunto tão polêmico tenha sido aceito por unanimidade em um Tribunal sabidamente heterogêneo.

O problema “racial” das cotas foi discutido e combatido por Roberta Kaufmann e Yvone Maggie. Porém, não se discutiu a questão das cotas associada ao mérito em nossa sociedade. Sob este ponto de vista, as cotas alteram a noção de mérito. Elas querem dizer que o mérito pode ser alcançado por uma oportunidade garantida por um privilégio, concedido como uma reparação a uma situação social que tenha retirado o poder de competição pela marginalização de uma parte da sociedade assistida pelas cotas. Mas se a sociedade humana é tão velha quanto as injustiças e esta hipótese nunca foi ventilada antes, não seria de desconfiar de que o mérito é impossível de ser obtido por privilégio? Não seriam enfim as cotas uma destruição do próprio mérito sob o manto de acomodar os desfavorecidos socialmente? Ou o mérito é inseparável da espécie humana do ponto de vista cultural e, portanto, impossível de ser descartado sem que se crie, involuntariamente, um preconceito social endereçado aos favorecidos pelas cotas?

Desconheço alguém que possa admitir a hipótese de um paciente acometido de grave doença que prefira escolher um cirurgião com menos mérito que outro. Ou, um consumidor, que tendo de escolher entre diversos produtos com o mesmo preço, vá optar pela marca que lhe pareça menos meritória, isto é, mais suscetível a defeitos de qualidade. Levado ao limite, o mérito não é uma invenção – mas um ingrediente civilizatório, presente nas obras de arte e nas conquistas de toda a história da humanidade. O mérito nos protege da pior escolha e, por conseguinte, do temor do fracasso. Isso tudo seria banal, não fosse o fato de que, no Brasil, o mérito é constantemente vilipendiado. Vemos o mérito preterido dentro de nossas instituições. Em nossa crítica social, frequentemente encontramos o argumento de que tal pessoa não adquiriu seus predicados por si mesma, mas por pistolagem, QI, fraude, etc. Isso é tão comum, que vivemos permanentemente antenados para a possibilidade de sermos enganados. Nossas relações sociais, em todos os níveis, são constantemente eriçadas pelo receio, pela desconfiança, pela disjunção.

E, quando, historicamente, uma mesma parte da brasilidade tem sobre si um passado manchado pela discriminação, achar que esse passado pode ser reparado com a distribuição de privilégios, é um atentado contra os princípios da Justiça e os fundamentos do Direito. Mas isso não me surpreende, porque não é difícil entender que o princípio da igualdade possa ser vilipendiado. Salvo exceções, somos uma sociedade cujo Estado se especializou em produzir regras para o triunfo dos menos meritórios na competição pelos cargos. No parlamento, nossos representantes são um exemplo de que o nosso sistema político foi construído em torno do sistema de cotas e não de méritos. Para eleger um parlamentar, o Estado criou um modelo tal que um político demagogo, corrupto e esperto tenha mais vantagens que um político sério e honesto, como bem o demonstra o palhaço eleito em 2010 para o Congresso Nacional, que forneceu a ‘cota’ de votos para eleger um procurador envolvido em fraudes com a Justiça. Nosso sistema eleitoral é um sistema de cotas.

E, no Supremo Tribunal Federal, os senhores ministros também têm entre seus pares alguns escolhidos pelo sistema de cotas, que ali chegaram sem experiência previa com a magistratura e com matéria constitucional, e tampouco apresentavam predicados intelectuais em matéria de Direito que os habilitasse à importância do cargo. No limite, nossa sociedade já é um sistema de cotas. Vejamos outros exemplos.

Há poucos anos atrás, uma lei instituiu a obrigatoriedade de as empresas de médio e grande porte reservar vagas para deficientes físicos. O assunto foi tratado dentro da dinâmica da inclusão social. Nossa política indigenista foi criada com base na distribuição de cotas do território nacional aos índios, em proporções muito acima de suas necessidades, mas utilizando o raciocínio de que as áreas indígenas seriam grandes reservas florestais, embora ninguém obrigasse os índios a mantê-las. Igualmente, a política para os quilombolas foi tratada como um sistema de cotas territoriais. Quem lê o livro ‘Populações Meridionais do Brasil’ de Oliveira Vianna, fica perplexo ao saber que grande quantidade de quilombos era de ex-escravos que se reuniam em bandos e viviam como salteadores de estradas.

Seus acampamentos se transformaram em vilas permanentes, abandonadas, e com precários contatos com a civilização. Hoje são objeto de estudos de nossos antropólogos empregados no licenciamento ambiental. Aqueles que gostam de falar de reparação da escravidão, como um direito dos afrodescendentes, não aceitam comentar os escritos dos autores que não tratam dela com as tintas do coitadismo.

A necessidade de reparação não existe neste país nem para fatos ocorridos ontem. Quando houve vazamento no campo de exploração da Chevron, a primeira coisa que o MP fez foi aplicar uma multa relativa à esperada reparação que o óleo causaria em nossas praias, provocando sérios prejuízos em nossa indústria pesqueira, turística e demais atividades litorâneas. O problema é que o óleo não chegou ao litoral. Mas, e se chegasse? Alguém acredita que o Estado brasileiro iria distribuir a multa para todos os donos de estabelecimentos prejudicados e pescadores impedidos? Creio que espontaneamente o dinheiro da multa iria abastecer o déficit do tesouro, como sempre acontece com nossos tributos e taxas.

Por isso não me surpreendeu a unanimidade do STF em adotar as cotas raciais. Em um país segregado pelos privilégios, pela desigualdade legal protegida em nome do princípio do direito adquirido, as cotas nas universidades são apenas mais uma mancha na estrutura social do país. As desigualdades sociais não são mais um legado do passado – mas políticas instituídas no presente. Os brancos pobres que o digam.


quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

A corrupção sistêmica

Carlos U Pozzobon

Por todos os lados se fala na corrupção. De repente, o Brasil descobre que a praga que infesta a Nação, desde o seu descobrimento, adquiriu uma proliferação tal que ninguém mais se sente confortável. A coleção de disparates sobre as causas da corrupção atinge proporções de festival de besteiras. Alguns praguejadores culpam o capitalismo, outros a ambição desmedida dos políticos, e há quem ache a corrupção uma inevitabilidade do gênio brasileiro.

Quando se analisa a sociedade, verificamos que existem espaços de troca em que a corrupção não tem vez: por exemplo, é impossível haver corrupção entre o comprador que compra para uso próprio e o vendedor proprietário. Portanto, uma sociedade de produtores e consumidores diretos não teria corrupção, isto é, duas pessoas que transacionam diretamente não têm como estabelecer um preço artificial.

Precisamos entender que para existir corrupção se impõe uma questão fundamental: entre aquilo que se compra e vende deve haver um representante, caso contrário, a corrupção inexiste. O representante pode ser um intermediário nas relações comerciais no mundo privado, que para isso toma todos os cuidados e auditagens necessárias a sua evitação, como pode ser o representante dos poderes públicos, que trabalham com o capital alheio, ou o chamado dinheiro público. Outra questão que favorece a corrupção é ambiental: ela é tanto maior quanto maior a burocracia de uma sociedade, cujas empresas têm seu gerenciamento forçado pelas normas do sistema político.

A corrupção pode, portanto, funcionar tanto no atacado como no varejo. No atacado, com o dinheiro público através de representantes envolvidos com grandes contratos: isso se denomina patrimonialismo. No varejo, pela ampliação da burocracia criada por leis e portarias que exigem mil coisas das empresas e indivíduos.

Tal não acontece em outras instâncias, como entre a empresa e o consumidor. Nas empresas que produzem bens de consumo de massa, a maximização do lucro é um fato que por si só reprime a corrupção. O lucro torna-se o próprio fator de vigilância e pressão sobre quaisquer arranjos que impliquem em sobrepreço. Enquanto o consumidor comprar com o preço mínimo, e enquanto a competição for um fato consumado a forçar os preços para baixo, a corrupção estará afastada, a menos que seja uma empresa suicida. O cálculo capitalista não deixa espaço para a corrupção. Porém, quando a relação capitalista migra para a esfera empresa-governo, os paradigmas mudam completamente.

Toda a empresa cujo lucro provém de escolhas, indicações, relacionamentos, contatos, conchavos, aparelhamentos, partidos políticos, organizações intermediárias, favores, parentelas, é uma empresa onde a suspeição de corrupção cresce com a conjuntura histórico-social.


Gerenciamento para o lucro e gerenciamento burocrático

Dois estilos de gerenciamento se impõem na conduta ética da sociedade: o gerenciamento para o lucro e o gerenciamento burocrático. Nos dias atuais, o gerenciamento para o lucro pressupõe um tipo de capitalismo minoritário: aquele da empresa com o mínimo de obrigações para com o aparelho governamental, além de um sistema tributário simples, direto e quase sem custos.

No gerenciamento burocrático, as coisas tomam dimensões que vão de um crescendo baseado em exigências governamentais, até a interferência direta. Todos os regimes totalitários são baseados em gerenciamentos burocráticos, e todos sem exceção são corruptos.

A razão é bastante simples: uma empresa estatal ou um órgão governamental não tem uma relação direta entre as fontes de receita e as de despesa. As receitas do governo são baseadas em leis tributárias, e as despesas não guardam proporção com as receitas, a não ser a exigência geral de que não sejam maiores do que as receitas, um preceito que a atividade política pode violar sem maiores consequências, e a criatividade fiscal fazer o resto do estrago. Quando a estatal é uma produtora, sua sustentação fica garantida pelo monopólio, a única forma de ajustar as receitas com as despesas: com esta liberdade, a corrupção pode ser uma prática constante, como de fato temos visto ao longo da história.

Assim, se a entrada não guarda uma proporção com a saída, todo tipo de injunção é possível. Em qualquer órgão de governo gasta-se baseado em critérios completamente alheios ao mercado, razão pela qual todos os amigos do estatismo, não importa a variante ideológica que assumam, encontram seu ideal de liberdade nas estatizações. Livres da exigência racional da despesa vinculada a fontes de receitas, eles podem se dedicar ao altruísmo moralista do bem-estar social, dos privilégios consentidos como autorreconhecimentos, da suntuosidade com o dinheiro alheio, da concessão em troca de apoio político, da generosidade com reivindicações sociais e trabalhistas. É o que o falecido Emil Farhat chamava ‘O Paraíso do Vira-bosta’ [T. A. Queiroz Editor, 1987].


O Sócio Oculto

A terceira categoria de organização social em que a corrupção se insere é aquela em que as exigências burocráticas ultrapassam a medida do suportável pela empresa competitiva. O estado passa de agente regulador a sócio oculto não declarado da empresa. Este é o caso brasileiro. Empresas privadas no Brasil, independentemente do fim a que se destinam, têm sempre um sócio indesejável, atrapalhado, volúvel, genioso, maléfico e usurpador. Para se precaverem contra associação tão deletéria, as empresas precisam de um grande contingente de pessoal, especialistas em direito tributário, previdenciário, trabalhista, sindical, ambiental, e por aí afora. Esquadrões de fiscais vigiam as empresas desde a colocação do alvará em lugar próprio e visível até os recibos de cartão de ponto de funcionários, as palavras proferidas pelos chefes capazes de causar danos morais, a incidência de luz solar e os possíveis efeitos ambientais da insalubridade, e centenas de pequenas coisas que não fazem parte das relações pessoais de empregados e patrões, tornadas sem efeito no arranjo social do contrato de trabalho, mas fundamento da existência do sócio invisível, da burocracia imposta com pesadas multas.

Assim sendo, se a burocracia é um conceito que explica porque uma empresa privada só pode se estabelecer consentindo em ter um sócio chamado governo, é muito natural que esta empresa privada perceba que a burocracia que lhe parasita sufocantemente pode ser a sua fonte de receitas superfaturadas e lucros extraordinários. Então uma parcela significativa do empresariado percebe que a única solução para o problema do governo como burocracia é fazer do governo o mercado. E estabelece uma relação de troca: o governo garante seu negócio e ele garante a burocracia do governo. E a sociedade passa a pagar nada menos que preços triplicados para esse arranjo institucional. São os cartórios que abundam em nossa realidade empresarial.

Nosso sistema supõe que o governo tenha toda a liberdade de criar taxas, disposições tributárias, e o que bem entender, desde que se comprometa em arrumar mercados, e os políticos não se omitam nas diligências para tal: desde os extintores de incêndio, aos seguros obrigatórios, as taxas de juro, as inspeções veiculares, as incontáveis indústrias fornecedoras do governo todas elas garantidas pela obrigação legal. E assim, se uma lei garante a própria existência do mercado, ele se chama governo, e não existe razão para a empresa não atender aos caprichos da burocracia associada.

Em tal ambiente, as empresas buscam uma compensação desempenhando o papel de fornecedoras dos órgãos públicos em uma economia em que quase 50% é consumida pelo próprio estado ou por seus agentes. Esse ambiente de promiscuidade social (promiscuidade entre um capitalismo avançado levado por uma classe de administradores profissionais e o semicapitalismo estatal, carregado por uma classe de agentes governamentais com superpoderes) forma as condições para a corrupção no mercantilismo das conveniências.

A corrupção pode ser moralmente indesejável, e de fato é, mas ela não é eticamente vencida com discursos, somente com atitudes. Fica na dependência das figuras de proa do sistema político. Com a cama pronta, se um governante honesto é eleito, ela pode ser contida em algumas iniciativas e até passar despercebida. Mas quando o próprio chefe de estado impede por decreto que o TCU investigue o destino do imposto sindical, a senha está dada, a corrupção corre frouxa como um abracadabra em que vão entrando no jogo todos os setores que sabem que a impunidade foi garantida e que tudo não passa de jogo de cena. A honestidade, nestas condições, é apenas um atributo pessoal, nunca uma exigência de decência social.

E não se enganem, uma sociedade é tanto mais refém da corrupção quanto menos lucidez possui para superar seus dilemas, quanto menor for sua capacidade intelectual de propor soluções para sua própria regeneração. Quando o problema passa a ser sistêmico, a corrupção só poderá ser saneada alterando as regras do sistema. A atual reclamação da frivolidade da oposição tem em mente esta verdade.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

O Poder das Redes Sociais

Última atualização: 12/09/2011 — by Carlos U. Pozzobon

O mundo anda perplexo com a Primavera Árabe. O mundo anda perplexo com as mobilizações via Internet. Na Espanha e Inglaterra, as manifestações convocadas pelas redes sociais foram capazes de organizar protestos que degeneraram em incêndios e ocupações de praças. Os governos discutem a possibilidade de criminalizar o ativismo digital.

A pergunta que se coloca, entretanto, tem outra natureza: trata-se de saber até que ponto o fenômeno das redes sociais pode melhorar ou piorar a democracia. Precisamos olhar os dois lados da questão para avaliar suas possibilidades.

Do ponto de vista positivo, sabemos que a mentira sempre tem uma vigência histórica que depende do resto do mundo em desmascará-la. Às vezes a vigência histórica da mentira é curta, outras vezes dura algumas décadas, mas no fim a verdade prevalece, ainda que muitas vezes ofuscada pelas conveniências. Mesmo parcialmente, a verdade tem se sobreposto à mentira. E, sob este ponto de vista, as redes sociais possuem uma vantagem considerável.

Devemos também levar em conta que a mentira é frequentemente utilizada durante curto período, como tem sido a fábrica de dossiês para fins eleitorais no Brasil. E, mesmo assim, consegue ser desmascarada em poucas horas.

Se considerarmos os entes coletivos como poderes sociais, podemos dizer que as redes são o sétimo poder. Depois dos três poderes do Estado, temos o quarto poder representado pela imprensa, o quinto poder representado pelos sindicatos e organizações sociais, e o sexto poder pelo crime organizado representado pelo tráfico de drogas e lavagem de dinheiro.

O sétimo poder das redes sociais tem privilegiado a organização de grupos de interesse coletivos, de caráter predominantemente apartidário (embora com a presença de militantes), em um debate não focado em programas e opiniões de partidos políticos, mas nos acontecimentos políticos gerados pelos grandes portais da imprensa, juntamente com questões existenciais e cotidianas de seus membros.

Em todos os lados do espectro político, vemos os mesmos grupos organizados. Mas, o que tem crescido substancialmente — e é aí que a diferença conta —, é a mobilização do público passivo transformado em agente ativo, através do ativismo digital propiciado pelas redes sociais.

Se de um lado do espectro, a militância por si só caracterizava a presença de ativistas estridentes, do outro lado, contingentes cada vez maiores da chamada “maioria silenciosa”, que não desejam o enfrentamento, mas que estão atentos à ponderação e à inteligência, são mobilizados pelas redes sociais.

O principal papel das redes sociais deverá ser a disseminação de conhecimentos, dentro de um quadro de sociabilidade e enlevo estético criado pela convivência, se levarmos em conta a crescente participação simultânea das pessoas em grupos de discussão, e também de poesia e literatura. Nunca esquecendo os fatos políticos que envolvem a comunidade em que se vive, essa disseminação de conhecimentos exige a presença constante dos intelectuais na interpretação dos eventos mundiais e nacionais. Trata-se, portanto, do mais democrático e participativo meio de difusão e debate de ideias jamais existente em outro momento histórico.

O lado negativo das redes sociais pode ser a formação de grupos com tendências totalitárias, e até mesmo terroristas, ou então com desvios sociopáticos comuns. Como demonstrei em meu livro “Um dia na vida o diabo duvida”, o totalitarismo se origina basicamente de 3 vertentes principais: a alienação e a idolatria, na versão socialista, e o altruísmo, na versão liberal. Estas 3 fontes precisam ser amplamente entendidas pelo cidadão globalizado do século XXI como condição de evitarmos que o totalitarismo possa ter uma vigência dominante na Internet. O altruísmo totalitário parte de meias-verdades com a finalidade de servir de instrumento de recrutamento e termina se consolidando como movimento de intimidação e degradação da ordem social.

Considere, por exemplo, o germe do “novo” movimento estudantil – a luta por mais verbas para a educação. Esta reivindicação é tão velha quanto o próprio movimento estudantil, e, no entanto, voltou com a nova geração de estudantes como panaceia para explicar a falência do ensino. Não conheço nenhum setor da vida social onde o aumento de verbas não o melhoraria em algum aspecto. Mas achar que o problema da qualidade está no aumento de verbas revela uma falácia intelectual sem precedentes. E, no entanto, durante décadas, essa é uma estratégia totalitária recorrente, baseada na criação de uma causa justa com a finalidade de recrutamento de militantes para grupos totalitários, como tem sido o histórico do movimento estudantil, hoje em dia turbinado pelo proselitismo conduzido pela cátedra.

O que as redes sociais podem fazer para neutralizar movimentos totalitários germinativos com a finalidade de arregimentação social de parcela considerável do corpo discente das escolas? Simplesmente neutralizando-os com um ativismo digital bem fundamentado. Se as redes sociais estão conseguindo isso, só o tempo dirá. Tenho a impressão que a vitória da verdade acabará por se impor.

Se levarmos em conta que o totalitarismo é uma doença do caráter humano, e que seus representantes são sempre saqueadores sociais que exploram seus semelhantes em nome da ‘justiça’ autodeclarada de suas causas, podemos concluir que esses movimentos têm grande fragilidade. Sua força só se consolida com a supressão da liberdade, condição necessária no momento em que o altruísmo de seus propósitos bater de cara com a impossibilidade de sua realização. E, enquanto houver liberdade nas redes sociais, o totalitarismo estará cercado por contingentes cada vez maiores de pessoas dispostas a desafiar seus princípios e argumentos.

Evidentemente, nem tudo pode ser creditado na conta do otimismo. Sabemos que o totalitarismo avança cada vez mais através da mudança de alguns paradigmas favorecidos pela ancestralidade oligárquica corporificada na Constituição de 1988, e pela debilidade institucional que permitiu uma migração de princípios democráticos para uma ‘subornocracia’ sem precedentes na história republicana. Anualmente, a ‘subornocracia’ distribui mais de 3 bilhões de reais para sindicatos, organizações sociais e culturais. Esse dinheiro tem dado o tom do oficialismo e da cooptação de setores importantes das classes populares e médias do país.

Além disso, ainda não assistimos a guerrilhas nas redes sociais. As difamações e calúnias ainda são dirigidas para candidatos de oposição ao status quo nos períodos eleitorais, e não a intelectuais independentes. Também não tenho conhecimento de roubo de identidade e de disseminação de informações falsas com nomes igualmente roubados de pessoas célebres na vida civil do país. Mas isso logo chegará. Precisamos estar alerta para o fato de subitamente aparecerem pessoas que conhecemos na Internet com opiniões devassas, grotescas ou opostas a toda circunspecção que lhes são características. Esse será o terreno onde as guerrilhas totalitárias, perdidas na argumentação, derrotadas no uso da palavra, estarão dispostas a manchar a reputação alheia a qualquer preço, naturalmente sendo ‘remuneradas’ para isso, direta, ou indiretamente.

Em qualquer caso, o sétimo poder das redes sociais favorece a integração social ao estabelecer novos núcleos coletivos, difusão cultural, aumento do nível intelectual dos ativistas digitais, e preparação dos ‘espíritos cultivados’ para a ordenação democrática, em oposição à delinquência intelectual que tudo faz para impor suas cretinices congênitas. Hoje em dia é ponto pacífico entendermos a tecnologia como um instrumento que, além de melhorar a vida humana, também favorece a disseminação do saber e das virtudes cívicas. Agora que os cidadãos comuns já foram “amansados” na operação de um computador ou celular, e se resignaram com a angústia de ter que aprender novas tecnologias ainda que provectos, precisamos nos conscientizar de que ser pacífico não é ser passivo, e de que o ser humano sem vida intelectual fica espiritualmente estagnado.

Isso determina o momento em que as redes sociais oferecem o ambiente ideal onde os gostos, aspirações e interesses comuns representam uma nova sociabilidade nas relações humanas, tanto quanto os salões, saraus e clubes do passado. E, melhor, sem ingresso de entrada e sem limite físico de participação.

Sem o constrangimento do “com que roupa eu vou”, as redes sociais deverão alavancar a cultura humana de uma forma jamais pensada pelos gurus, futurólogos e profetas de todos os tempos. O resultado disso já está aparecendo na forma de uma espécie de cão-de-guarda da democracia, um poder com peso específico próprio no debate democrático.

sábado, 5 de março de 2011

Estripulias em Tripoli

Última atualização: 5/03/2011 — by Carlos U. Pozzobon

O grau com que certos eventos dependem de acontecimentos ligados à tecnologia tem sido muito pouco discutido e não ultrapassam a barreira das especulações.

Durante muito tempo, no Ocidente, os intelectuais se dedicaram a combater o que se chamava de ideologia do progresso, uma ideia hegeliana que passou para o marxismo, depois para o fascismo, e por fim abortou em intelectuais ilustrados como Bernard James (The Death of Progress: Alfred Knopf, 1973), Arnold Toynbee (Surviving the Future: Oxford University Press, 1971), e Lewis Mumford (The Myth of the Machine: Harcourt Brace Janovich, Inc., 1970). Todos levantavam sérias dúvidas sobre se a tecnologia garantiria uma melhor qualidade de vida para o homem no futuro, ou se seria o prenúncio de um caos. Tendo em vista que a guerra fria e a consequente ameaça nuclear eram o que mais aterrorizava na época, naturalmente que a tendência intelectual ao pessimismo parecia irresistível.


Tropelias

Agora que o Oriente Médio (e o norte da África) estão em permanente ebulição, as resistências ao pessimismo tecnológico parecem ter dado lugar ao otimismo exagerado: foi mesmo a Internet e suas redes sociais, juntamente com os celulares e os satélites que serviram de estopim para um levante geral que parece não se deter apenas nos povos de língua árabe?

Qual a contribuição ‘inconsciente’ que um presidente chamado Barack Hussein Obama teria dado a esta causa, sabendo-se que logo que tomou posse foi direto a Istambul discursar orgulhoso de ter crescido em uma família muçulmana? Acaso esse gesto não teria sido como jogar um balde d’água na maledicência árabe contra os EUA?

O que mais poderia preparar a reação das massas tiranizadas durante décadas por satrapias de ditadores, enquanto o modo de vida ocidental penetrava descontroladamente em seu cotidiano, através de novos objetos de consumo, ao mesmo tempo em que testemunhavam as espetaculares construções e edifícios de seus vizinhos afortunados de Abu Dabi, Riad e Dubai?

Não sabemos exatamente o peso de cada avanço tecnológico nas futuras exigências de um povo porque parece não existir sincronia entre o progresso e as mudanças comportamentais. Sabemos apenas que o progresso antecede essas mudanças, mas não sabemos quando e o que acontecerá.

Considere as mudanças comportamentais no Ocidente provocadas pela tecnologia. O sociólogo norte-americano Daniel Bell, falecido recentemente, escreveu um artigo sobre a geração de Woodstock. Nesse artigo, Bell refletiu sobre a revolução do comportamento sexual, a disseminação do uso de drogas, os efeitos de um novo hedonismo – que levaria a sociedade americana para o consumismo, e novas formas na relação entre pais e filhos, homens e mulheres, tudo em decorrência das novas tecnologias que se disseminavam em bens de consumo, e que permitiam um novo estilo de vida. Isso de fato vem ocorrendo em doses cavalares, especialmente depois do advento da Internet.

Embora tenha sido sobrevalorizada, a Internet de fato foi capaz de retirar uma comunidade do seu isolamento, de forma barata e ampla. Essa passagem do universo paroquial para o cosmopolita, em qualquer canto do mundo conectado, significa acima de tudo a explosão – pela primeira vez simultânea – de um sentimento de insatisfação entre as sociedades atrasadas, vis-à-vis as sociedades engajadas no desenvolvimento tecnológico.

Como não existe um descontentômetro que possa medir o grau de frustração de uma geração, concluímos que os levantes no Oriente Médio e Norte da África comprovam que não é mais possível manter populações subjugadas por oligarquias, cujas políticas essencialmente levam a frear o desenvolvimento em detrimento do empreendedorismo, a não investir em conhecimento, e a não sair do mesmo círculo vicioso de estagnação e exclusão social da maioria.

O mundo árabe corre o risco do retrocesso se não aparecerem elites intelectuais capazes de enfrentar as propostas de desenvolvimento baseadas no aumento da estatização, e sequestrar o entusiasmo da nova geração com promessas mirabolantes de um estado onipotente e paternalista.

No século XIX, alguns escritores chamavam as limitações da cultura de “síntese dos hábitos cognatos”. Este eufemismo significava que a cultura criava sua própria recursividade de procedimentos, alavancando sempre os mesmos tipos de reações para as mais diferentes crises, até que novos valores, incorporados por decantação de influências externas pudessem subverter o equilíbrio existente, com a introdução de novas ideias.


Sincretismo

Para saber até que ponto os países de fala árabe irão se beneficiar do “espírito da época” em que vivemos seria necessário avaliar a influência que os países da orla do pacífico asiático exercem sobre eles. Apesar de estarem próximos da Europa, o exemplo vem da Ásia, porque é no Oriente onde são mais evidentes os exemplos de transformação de economias pobres e atrasadas em espetacular desenvolvimento econômico, humano e social em um curto espaço de tempo, ao contrário da Europa, onde tudo evoluiu com lentidão e ziguezagues.

Mas que direções devem tomar os povos de fala árabe em um ambiente de confusão intelectual, ausência de organização política e rarefeitas lideranças regionais? Tudo indica que se trata de um processo de libertação empírico, em que os avanços deverão ser feitos no processo de organização e luta. E, nesse caso, em algum momento a unidade das ruas dará lugar à confrontação de interesses divergentes e às inevitáveis represálias sectárias. Mas é o momento para o aparecimento de uma nova entidade pan-árabe, firmemente comprometida com a democracia, os direitos humanos, a liberdade de opinião, e todo o rosário de ensinamentos do Ocidente.

Qualquer que seja o futuro desses países, a verdade é que eles deverão passar por um novo sincretismo. E, por mais pessimistas que sejamos, duvido que eles recuem para um regime tão opressivo quanto o iraniano.

Creio que podemos dizer como desabafo que o pior exemplo para os países de fala árabe é, nesse momento, repetir o que aconteceu no Brasil em 1988, onde o conto do vigário da “democracia sem adjetivos” terminou em um sistema de falsa democracia e de evidente desordem institucional vinte anos depois.

Quando as estripulias da mudança de poder tiverem acabado, veremos se do deserto será capaz de brotar um novo espírito que não seja a velha repetição do populismo e clientelismo, do onipresente estatismo e da recorrente violência banal do terrorismo. Alea jacta est.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Procura-se um Partido de Oposição

Carlos U Pozzobon

Conforme anunciei em julho pp., no artigo A Ingenuidade da Oposição, minhas opiniões se confirmaram. Serra perdeu as eleições, mas poderia ter ganho não fosse a estratégia míope do PSDB e de seus marqueteiros.
Em julho eu dizia que a única forma de derrotar o PT era uma campanha com alto poder de emocionar as massas. Isso não tem nada demais. A emoção tem sido a estratégia de Lula para chegar ao Poder e o tom do discurso de todo o PT para se eleger. O PSDB não entendeu o tipo de adversário que possui. Sem uma campanha trepidante, e sem motivar as massas não chegaria à vitoria. Para Lula, o pouco que fez não tem efeito prático: o que importa é sempre a desforra sobre o adversário, ainda mais que FHC não parece ter a noção da agressividade necessária para o tipo de adversário, de não deixar passar em branco nenhuma mentira que lhe é atribuída estrategicamente. Comporta-se como alguém que se preocupa mais com o que dirão os acadêmicos do que o que possam falar “os baixos instintos” da militância adversária.

Emocionar as massas é dar a elas coesão e motivação para derrotar um governo e um partido que não apresentam propostas de transformação social, ao contrário, transformam o Brasil num país primitivo, atrasado, velhaco, eleitoreiro, fisiologista, corrupto e sem educação, em que todas as pessoas sensíveis e ilustradas se sentem constrangidas de serem representadas por alguém que as envergonha com a falta de polidez no trato e conteúdo no falar, obrigando-as a se distanciar e se isolar ruborizadas com uma postura que confunde pseudo-informalidade com ignorância e desfaçatez, a menos do indefectível conjunto amorfo de bajuladores e interesseiros.

Uma campanha contra um partido tão detestado por sua conduta anti-intelectual, por suas grosserias vulgares e por sua tibieza moral, mereceria uma estratégia centrada em São Paulo servindo como exemplo de irradiação para todo o país. Mas nada disso foi feito.

O erro de Serra perdurou ao longo de toda a campanha. E examinando mais detidamente, não faz parte de sua conduta individual, mas parece ser o comportamento de todo o PSDB. Os problemas vão da agenda de campanha ao tipo de discussão.

Primeiro, a ideia errada do PSDB de dar prioridade ao que chamam de agenda positiva. As propostas de governo são importantes, mas no confronto de candidatos, o PSDB deve dar mais prioridade às criticas ao governo do que às propostas de gestão. Agenda positiva é assunto para países com uma organização social bem estruturada. Para países com um caos social como o Brasil, a força eleitoral nasce da crítica implacável ao governo. Foi assim que o PT forjou sua base eleitoral em 20 anos.


Verificamos que a força do PT está na sua atitude crítica, e sua fragilidade está nos programas de governo, que não passam de generalidades mal concebidas e de um regresso ao estatismo do regime militar. O que revela que seu propósito maior está mais em ganhar as eleições, destruindo adversários, do que em construir uma agenda positiva para o Brasil.

Agenda positiva deveria ser proposta a uma audiência educada, e a campanha de Serra esteve mais para o contexto da Suécia do que do Brasil. Portanto, agenda positiva depende do contexto social: é necessária para pessoas instruídas, mas não emociona aqueles a quem o regime coloca na servidão dos meios de existência. E o rumo dos acontecimentos mostrava escandalosamente que somente uma alta dose emocional iria virar a mesa.

Em segundo lugar, o conceito de carisma. As pessoas pensam que carisma é uma espécie de essência ou flagrância da personalidade humana associada à empatia do discurso. Enganam-se: carisma é aquilo que uma pessoa apresenta no discurso quando critica uma situação ou os outros com as palavras que gostaríamos de dizer, mas que entretanto ainda não formulamos. O carisma funciona como uma transferência da nossa personalidade para a do líder, que pode ser tanto um político como um escritor ou apresentador de TV.

Políticos carismáticos possuem alta dose de ironia, capacidade inata para trocadilhos, uma “presença de espírito” para expressar ideias com metáforas simples e contundentes, para escrachar os inimigos e pulverizar as opiniões dos adversários. Nada disso emanou de Serra. Ele não sabe rir, não sabe satirizar, não consegue ser irônico. Seu tom é de professor em sala de aula, e isso é fatal para uma audiência como a brasileira que cultiva a piada do dia e abriga na alma uma inclinação natural para a irreverência.

Uma questão da velha política brasileira, defendida por Carlos Lacerda, era a do político “bom de voto”. Juscelino estava sempre sorrindo, era uma simpatia ambulante, independente de sua política. Lacerda tinha um grande charme e uma verve dificilmente igualada por qualquer outro político brasileiro. Serra não tem nada disso. Parece uma pessoa pálida, sem graça, mortificada por pensamentos sombrios.


Considere um assunto, por exemplo, o da educação. Serra centralizou o assunto em si mesmo, isto é, em sua gestão, e isso significou a perda de oportunidade de criticar o governo. Serra procurou mostrar os dados positivos do seu governo em SP. Consumiu seu tempo com isso. Mas os baixos índices de aproveitamento escolar não estão relacionados com um sindicato de professores comandado por militantes do partido adversário, e em cujas greves políticas os alunos ficaram prejudicados? Não são esses professores que estão destruindo consciências ao se oporem abertamente aos critérios de meritocracia, instituídos por Serra, na concessão de benefícios aos seus pares? Acaso o partido adversário não tem responsabilidade pelo caos no magistério?

Considere a decomposição intelectual de cursos patrocinados pelo governo federal, como o de Astrologia na Universidade de Brasília, ou seu Núcleo de Estudos Paranormais, que entre outras matérias se dedica ao estudo da Ufologia e da Cientologia, Teologia Ubandista, e assim por diante. Talvez Serra tenha evitado criticar esses descalabros para não ser acusado de patrocinar o curso de Consciência Negra introduzido na USP – uma bobagem sem tamanho, que nem merece consideração de pessoas instruídas.

E as cotas? Por que não se posicionar? Acaso ignorar questões que possam causar controvérsias e até reações contrárias vão melhorar seu desempenho eleitoral? A estratégia de não tocar em assuntos polêmicos equivale a de não ganhar adeptos. O resultado foi o previsto.

O vazamento de informações da conta bancária de sua filha não foi capitalizado em vantagem política porque Serra e o PSDB se opuseram a assumir uma liderança que estava mais além da disputa eleitoral. Era para convocar as massas para um comício no Ibirapuera, no início de setembro, sob a palavra de ordem que envolvesse todos os brasileiros sob ameaça de chantagem e violação de privacidade pelo aparelhamento petista na Receita Federal. Era o momento para Serra se despojar de sua postura de candidato e assumir o papel de líder popular. Era a virada necessária para atrair a classe média para as salvaguardas de privacidade e respeitabilidade vilipendiadas pelo governo federal. O que falar no discurso? Bastava apresentar um saldo bancário e dizer que doravante todos os brasileiros teriam suas contas bancárias devassadas. Simples como isso. E naturalmente perguntar: você gostaria que os outros soubessem que você comprou ontem uma... deixo aos marqueteiros a conclusão dessa frase.


Mas o fato mais dramático da campanha foram os desdobramentos com as denúncias envolvendo a corrupção na Casa Civil. Agora era para levar novamente as massas para o parque Ibirapuera em SP e redobrar os ataques a um governo cuja concussão está no próprio gabinete presidencial. Era uma radicalização necessária e imprescindível, sem a qual não haveria a possibilidade da vitória. Tratando o assunto com protestos, mas sem mobilização, dificilmente atingiria o efeito midiático necessário à virada eleitoral. E vimos o episódio acabar com mais uma oportunidade perdida. O comedimento do PSDB, certamente aterrorizado com a possibilidade de que o processo eleitoral nos levasse a uma guerra civil como na Espanha de 1936, mostra que não sabe lidar com o totalitarismo incipiente.

FHC deve estar arrependidíssimo de não ter encorajado o impeachment de Lula em 2005, quando da explosão do mensalão. De lá para cá, a desfaçatez atingiu proporções nunca antes igualada na história republicana. O que nos permite concluir que o PSDB não é um partido político disposto a assumir os riscos que a política impõe àqueles que se aventuram a abraçá-la sem vacilações nos princípios do decoro.

A primeira reunião no Largo do São Francisco, ocorrida para manifestar repúdio à tentativa de censura à mídia, tinha que ter a presença de Serra, mesmo não sendo convidado. Era para chegar e discursar em qualquer circunstância, para capitalizar a liderança contra o golpe na imprensa livre. E com palanque. A imprensa iria repercutir como mais um fato a favor da liberdade e da oposição. Mas não foi isso que aconteceu. Por falta de senso tático não havia a presença do PSDB no palanque. O terceiro erro garrafal.

A segunda reunião, ocorrida sexta-feira 29/10, forçada por insistentes pedidos dos participantes do portal Proposta Serra, não havia palanque nem organização. Foi uma manifestação espontânea de última hora para apoio à sua candidatura com a presença de Alckmin, e parece de FHC, mas sem qualquer preparação e organização eficazes. Isso por si só consolida a ideia de que a campanha não tinha uma trajetória voltada para a mobilização das massas.

Repito que não haverá deposição do PT do governo se a oposição não assumir o papel de radicalizar o processo de defesa da democracia. Infelizmente é esse o único caminho existente para as mudanças. E por radicalização entendo a criação de comitês de amplo movimento nacional contra a ameaça de uma ditadura civil. Precisamos nos convencer de que o PT vestiu o modelo da ditadura, isto é, o PT representa hoje a ditadura do passado. E não se destitui um movimento que tem a capacidade de criar um exército de movimentos sociais mercenários sem um chamado ao patriotismo e à coragem.


Em 2009, os movimentos do PT em favor da cooptação de banqueiros (aumentando de lambuja os juros, sem qualquer justificativa), e de cooptação do empresariado (fornecendo empréstimos do BNDES a juros subsidiados por uma taxa 4% mais cara aos cofres públicos), exigia postura enérgica da oposição contra o estelionato eleitoral e um requerimento imediato do STF para forçar o BNDES a divulgar os beneficiados pela tramóia. Não foi isso o que aconteceu. O PSDB se manteve dentro de uma cautela onde o jogo político terminou voltado para os interesses regionais.

Há também o fiasco das eleições para Senador em São Paulo. A negociação com Orestes Quércia, um candidato apoiando Serra, como dissidência do PMDB de Temer, foi totalmente inútil. Sabendo que a composição do Senado pode levar ao perigo de uma guinada totalitária na próxima legislatura, o PSDB se entregou a um jogo medíocre em vez de conchavar um rompimento do DEM, e este apresentar candidatura própria, como a de Afif Domingos, possibilitando uma dupla de senadores PSDB-DEM. Não foi o que aconteceu e a oposição ficou com uma só opção para o Senado em uma eleição de 2 votos. Existe atrapalhação maior?

Outra questão que levou Serra a perder votos foi o problema do pré-sal. Desde 2009 venho advertindo para a questão do pré-sal como um novo marco econômico para o país (veja os artigos "Adeus pré-sal" e "Maus presságios para o pré-sal" neste blog). O pré-sal deveria representar para as lideranças oposicionistas o descortinar de um novo momento na sociedade brasileira, como foram o ciclo da cana-de-açúcar, mineração de ouro, café, pecuária, soja, todas exemplares na formação do Brasil. O pré-sal exigia visão estratégica de um novo ciclo de desenvolvimento, com o país sendo visto e pensado como uma potência petrolífera exportadora. Infelizmente nada disso aconteceu. Afinal, se a atividade petroquímica pulou de 2% para 12% do PIB em uma década, era para se dar uma atenção especial.

O governo Lula cometeu tantas tropelias com a distribuição dos royalties que qualquer pessoa sensível podia perceber estar aí uma oportunidade para pulverizar a lógica do governo. Desde 2007, quando a questão do pré-sal foi colocada na sociedade brasileira, os partidos de oposição não foram capazes de criar um programa estratégico para o pré-sal que consubstanciasse a direção do Brasil em país exportador de petróleo e produtos petroquímicos, com a gasolina a 1 real (e alguns centavos) nos postos, algo perfeitamente factível, como tínhamos antes da crise do petróleo de 1973. Era essa a proposta de sensibilizaria as massas para uma grande guinada eleitoral.


E a capitalização da Petrobras então nem se fala. Silenciando sobre uma fraude de 5 bilhões de barris que se leiloados no mercado privado atingiriam cifras acima de 100 bilhões de dólares, Serra preferiu não enfrentar o terrorismo da privatização e, mudando a estratégia, acusou o PT de privatização, mostrando que a ANP no governo Lula teria leiloado mais áreas do pré-sal do que FHC. Com isso, pretendia neutralizar o discurso petista de estatização.

Foi mais um erro garrafal. Ora, o PT, desprovido de capacidade intelectual para perceber o pré-sal como um trampolim para uma nova fase de desenvolvimento do Brasil, a menos da proposta de lesa-pátria do modelo de partilha – em que a Petrobras passa a definir o quanto vai gastar em cada poço para só depois dar satisfação ao governo –, poderia ficar acuado com a promessa de o Brasil exportar 5 milhões de barris/dia de óleo, e equivalentes de gasolina e produtos petroquímicos, o que exigiria a triplicação de nossas plantas petroquímicas e refinarias. Isso permitiria oferecer aos brasileiros uma gasolina a preço de banana na bomba, mostrando que quanto maior o número de empresas envolvidas no petróleo melhor para o Tesouro, pois criaria uma arrecadação excedente permitindo uma reforma tributária que enriqueceria a nação.

Ao contrário, a campanha de Serra partiu para encurralar Dilma mostrando que 108 empresas petrolíferas privadas (e algumas estrangeiras) teriam se instalado no Brasil à custa do governo Lula. Convenhamos! Não é possível que semelhante burrice possa se originar no ‘intelectualizado’ PSDB. Este não é um argumento sério. As empresas privadas são resultado do novo marco regulatório do petróleo instituído por FHC. Foram estas empresas que, nos últimos anos, permitiram o pulo de 10% em nosso PIB só com a contribuição do petróleo.

Ao adotar um tom nacionalista retrógrado, Serra desvalorizou o próprio legado e colocou contra si empresas que poderiam estar a seu favor. Na verdade, o governo Lula simplesmente deixou o carro correr porque governa o país na ‘banguela’, com os frutos do esforço hercúleo dado lá atrás com as reformas incompletas de FHC. Os governistas gostam do Estado porque não precisam coçar a cabeça criando soluções baseadas na produção e no desenvolvimento econômico – teoria que desprezam e negligenciam. Qualquer pessoa minimamente instruída sabe que Lula se comporta na direção do caminhão Brasil, conforme o plano inclinado da economia mundial, e se refestela de faceiro dirigindo um veículo no declive asiático sem saber onde fica o acelerador. Mas como um amador na direção do caminhão Brasil aproveita o embalo até a próxima subida, preparado para criticar Deus e o Diabo quando o veículo parar por desconhecimento da máquina que dirige.


Incapaz de pensar no futuro de reservas bilionárias em petróleo, Serra voltou-se para o passado e tratou de evitar o terrorismo da privatização da Petrobras impingido a Alckmin em 2006: novamente evitando riscos, comprometeu a vitória. Serra tinha obrigação de mostrar aos aliados de Dilma sua natureza crua e nua, isto é, disparar contra os adversários com as mesmas armas disparadas contra ele.

Por que não mobilizar a aterrorizada classe de agricultores com as imagens de destruição das fazendas pelo MST? Em política, existem atos que não podem passar em branco, sob pena de cumplicidade e acobertamento. Não mostrar na TV as inúmeras cenas de vandalismo praticadas pelos aliados de Dilma em todo o país significa ignorar que nosso campo vive em situação de intimidação, de medo e terror de que uma denúncia qualquer possa significar a perdição de famílias inteiras, na destruição de um esforço de gerações na labuta da terra em favor de uma massa de saqueadores mercenários comandada por líderes terroristas. E não será essa insegurança rural que vai acabar se estendendo para as cidades atingindo todos os cidadãos deste país?

Por que Serra não apareceu na TV em plena Carajás para defender a privatização de uma empresa que se decuplicou em valor em dez anos? Por que não falar dos telefones de 4 mil dólares do passado para custo zero dos dias atuais? Por que Serra não apareceu na TV assumindo a paternidade e segurando uma nota de 1 real? Por que Serra não apareceu na TV ao lado de um avião da Embraer? Por que Serra evitou mostrar que São Paulo é a locomotiva da nação, e que somente em São Paulo existe um museu de ciências chamado Catavento que ele mesmo criou, um museu do futebol, um museu da língua portuguesa, e tantas outras coisas negligenciadas em sua campanha eleitoral? Com a abordagem inadequada dos temas sociais dos últimos anos, como a recriação da Telebras, as invasões de terra, o PNDH3, as cotas raciais que já citei, vivenciamos uma campanha política em que o discurso dos candidatos não bate com a realidade social.

Por isso, o balanço das eleições de 2010 está muito longe de ser fechado, e talvez tenha consequências e desdobramentos que vão bater em 2014. José Serra deveria ter mais autocrítica para reconhecer que foi com ele que em 2002 Lula assumiu a presidência. Considerando que Dilma Rousseff é uma candidata que todo político esperto pediu a Deus para bombardear, já que seu perfil também não é de política, e seu discurso não contém o kit mínimo indispensável à sobrevivência, pois, tal como Serra, não tem ironia nem mordacidade, o que fez de Dilma uma vencedora foi a fraqueza política de Serra e não atributos políticos inatos de Dilma. Ela venceu as eleições sem nunca ter sido candidata, e isto significa que o nosso sistema político prescinde do próprio candidato. Isso por si só já é um sinal alarmante de que não estamos numa democracia, mas em alguma outra coisa que não sabemos, mas que entretanto fizemos questão de fingir que é democracia. Uma candidata que não se elege com atributos pessoais, mas com uma estrutura suprapartidária sinaliza crise à frente.


Com um discursinho desmilinguido, Marina Silva conseguiu quase 20% dos votos. Não era uma lição para Serra perceber o erro em que tinha se metido? Com razão se dizia que Dilma não estava preparada para a presidência da República. Isso ela demonstrou nos primeiros dias de campanha, quando se viu que era uma pessoa cujo perfil era o de ser comandada e não o de comandar.

Mas esse é também o perfil de Lula. Não existe ninguém mais desprovido de condições de comando do que Lula. A menos para os bajuladores de plantão e os batedores de palmas de auditório. O que demonstra que o problema da capacidade de comandar nunca esteve em julgamento no pós-ditadura. Isto significa que uma geração inteira de brasileiros sequer entende o que significa política além de foguetórios e louvações. E nos dois casos, Serra foi o escolhido para dar combate a este embuste que renegou todas as reformas e silenciou em todas as mudanças sociais que o Brasil gritava 2 décadas atrás. E perdeu. Perdeu pelo silêncio e pela omissão. Perdeu pelo esquecimento e pela desconsideração com os próprios avanços que protagonizou.

O que ficou claro é que o Brasil precisa de um partido de oposição. Ou melhor, de um movimento apartidário de oposição. Um movimento que seja capaz de reunir intelectuais, de escrever um programa de reformas que o Brasil precisa, e que se disponha a arregimentar simpatizantes em todo o país. Em 2010 a coligação Brasil Pode Mais mostrou eleitoralmente que não pode nada porque não entendeu o Brasil. Está na hora de os brasileiros se darem conta de que precisam de um movimento político que seja efetivamente de oposição, e de preparar um candidato com a sorte de ter para seu adversário alguém tão insípido e mau político quanto José Serra, e tão desastrado quanto o PSDB e seus marqueteiros.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

A Ilusão da igualdade social

Última atualização: 10/09/2010 — by Carlos U. Pozzobon

No horário reservado aos partidos políticos, Plínio de Arruda Sampaio notabilizou-se pela defesa da igualdade social. Embora não entrasse em pormenores antropológicos e históricos, sua visão se resumiu a um ponto: limitar a posse da terra em mil hectares, e garantir que o excedente beneficie os sem-terra, segundo sua visão distorcida de reforma agrária, em que a justiça social no campo é obtida com a distribuição de terras.

A igualdade social é um mito que não precisaria ser reeditado se o Brasil não fosse o laboratório de ideias jurássicas ressuscitadas pela oportunidade do horário eleitoral televisivo. Em seu livro ‘O Mito e o Homem’ (Edições 70, Lisboa, 1972) Roger Caillois nos conta da dinastia Tchéu da China que, durante 866 anos e 34 imperadores, reinou sob o conceito dos Ritos Imutáveis. Eram leis e um conjunto de instruções, normas e procedimentos que definiam a conduta de todos os homens e mulheres do Império. Havia leis específicas que condenava à pena de morte, no caso de propagação de notícias falsas, e que no julgamento dos altos funcionários pudessem levar o país à instabilidade.

O objetivo era o de uniformizar toda a vida do império. Para isso, foram definidos os Cinco Princípios Cardiais e as Três Virtudes Indispensáveis. Eram condenados à morte todos aqueles que propagassem falsas informações, assim como os que procurassem introduzir novos utensílios e técnicas aos existentes, chegando ao ponto de abranger os caracteres da escrita e a reforma dos costumes, como introduzir mudanças na alimentação, no sono e na procriação.

Caillois não viveu o suficiente para visitar a exposição dos Guerreiros de Xian, uma sensacional descoberta arqueológica do século III A. C., em que um exército de terracota representava os guerreiros do imperador Qin, todos portando os mesmos trajes, o mesmo estilo de cabelo, calçados, armas, etc. Mas nos conta o que os manuscritos da época narravam sobre esta ilusão: o de impedir que o futuro diferisse do passado, controlando o presente. Isso não evitou que o espírito de rebelião se instalasse contra a ordem, em parte motivado por fatos reais, em parte por superstições, já que o rei estava cercado de adivinhos e feiticeiros com o objetivo de descobrir a poção da imortalidade.

Voltando à dinastia Tchéu, a pior consequência para o reino foi a ampla liberdade de especulação que concedeu aos intelectuais da corte nas reformas que implantou com o objetivo de coagular para sempre os novos princípios e leis:

“As reformas do imperador não entraram na ‘mentalidade acanhada dos estúpidos letrados’, de tal modo que o grande juiz Li-Seu os considerou como obstáculos à ordem nova; segundo este magistrado, eles procuravam argumentos no passado para denegrir o presente e inquietar o povo. Tornavam belas as suas utopias, para que a realidade, por contraste, pudesse parecer feia. Ainda que apenas o dono do império pudesse distinguir o preto do branco e ditar a lei, os únicos capazes de avaliar o seu sentido pessoal, juntavam-se para criticar o soberano perante o povo. Com isso, Li-Seu pediu que todos os livros, à exceção dos tratados de medicina, farmácia, profecia, agricultura e jardinagem, fossem entregues às autoridades policiais para serem queimados, que todo aquele que discutisse um texto das Odes ou dos Anais fosse condenado à morte e o seu cadáver exposto no mercado público, que todo aquele que fizesse uso destes textos com o fim de denegrir o presente fosse exterminado juntamente com toda a sua família, e que tivessem o mesmo fim dos delinquentes os funcionários que se mostrassem complacentes na aplicação da lei. Como o imperador acedeu a este pedido, a lei foi aplicada e toda a literatura antiga chinesa desapareceu por efeito desta medida, junto da qual o archote do califa e as fogueiras de Savonarola aparecem como manifestações isoladas de um humor pueril” (CAILLOIS, p.96).

“Assim, sob o domínio dos Tchéu, não interessava absolutamente nada que o Império fosse forte ou justo, ou seja, o que for desse gênero, porque o Império não tinha finalidade fora do seu ser. O que unicamente contava era que o dia-a-dia continuasse a ser exatamente o que era, de qualquer modo, até fatigar o tempo. É que, num certo sentido, o tempo, que podia a qualquer momento dar origem à variação, era o único inimigo que o Império temia; mas como esse inimigo era apenas temível em função da variação, bastava simplesmente obter um triunfo sobre ela para impedir o tempo de ser um devir. Por isso, era considerado um crime contra o Estado toda e qualquer tentativa de introdução nos ritos de uma modificação, por mais diminuta que ela fosse” (CAILLOIS, p. 97-98).

Ao contrário do passado chinês, o que nossa tradição ocidental estabelece, a partir da herança helênica, é a diferença entre vida privada e vida pública. Na vida privada somos todos diferentes. Na vida pública não. A noção de que somos seres únicos, singulares, insubstituíveis, corresponde à vida privada. Na vida privada temos o direito à diferença. Na vida pública, o propósito da organização social é a igualdade de todos perante a lei. Uma sociedade altamente desenvolvida implica em tanto mais igualdade legal quanto maior a noção das interações humanas na comunidade. Mas na vida privada, tudo é guardado pelo direito à diferença. Daí porque o sigilo bancário deve ser respeitado.

A vida privada se constitui em torno do reconhecimento da diferença e da liberdade de cada um em construir seus próprios valores. Uma pessoa pode achar mais importante ganhar dinheiro e outra estudar. O resultado é que elas certamente serão desiguais no estilo de vida e, naturalmente, na quantidade de bens que irão amealhar. Uma pessoa pode ter 500 hectares de terra e sentir que é o suficiente para si e seus filhos. Outra pode pensar diferente e adquirir mais terras devido a oportunidades, mais perspicácia nos negócios, mais diligência na vida, ou simplesmente por sorte, ambição, ou por fatores regionais, sazonais, e um número não controlável de eventos circunstanciais. A essência da liberdade reside justamente no fato de que não existam limites muito definidos sobre o quanto se pode prosperar, em reconhecimento ao fato de que a prosperidade de um auxilia os demais na comunidade em que vive.

Se a igualdade fosse uma ideia mandatória na vida privada das pessoas, o governo deveria abolir a loteria. Semanalmente milhões de brasileiros vão às casas lotéricas para serem diferentes do que são, pois não há nada mais desigual do que alguém amealhar uma mega-sena, e todos os outros se conformarem com a falta de sorte. Mas é por causa da aceitação de que somos desiguais em aptidões, talentos, e até mesmo na sorte, no benefício do acaso, que temos que admitir que igualdade só existe na construção dos direitos, não na obtenção de bens.

Para alguém que se apresenta como procurador de justiça aposentado, Plínio deveria focar em nossas desigualdades legais, a começar pelo embaraçoso apartheid da previdência social, onde alguns se aposentam como nobres e outros como súditos, senão como escravos.

Plínio não o faz porque a reforma agrária é uma das ideias gerais que servem para encobrir as deficiências intelectuais de uma teoria moribunda e de um passado assustador. E o limite proposto de 1000 hectares está para a economia do agronegócio — onde uma máquina agrícola custa entre 200 a 300 mil reais e foi projetada para grandes plantações —, como um elefante pode estar para um morador de um apartamento como seu animal de estimação.

Ouvindo seus clipes no Youtube, ficamos sabendo que ele se posiciona contra a transposição das águas do Rio São Francisco. Comungando com a opinião de 1 ou 2 bispos esbravejadores do cangaço, Plínio demonstra que a irrigação do sertão vai ser prejudicial ao lavrador porque a chegada da água representa a inevitabilidade do agronegócio, já tão próspero em algumas regiões do nordeste. Não tendo o lavrador – supostamente no raciocínio de Plínio – capacidade para tal, terminará irremediavelmente entregando a terra aos novos cultivadores ou se tornando um empregado destes. Portanto, a imagem de um nordeste pleno de cultivares, com duas ou mais safras anuais, quase um paraíso na terra, com uma economia agrícola diversificada e dinâmica, não serve a Plínio. Sua solução é uma abstração mágica chamada reforma agrária, esta sim, tudo resolverá, mesmo que a prática tenha demonstrado o contrário.

Tal como na dinastia Tchéu da China descrita por Callois, a luta de Plínio contra a transposição das águas do Rio São Francisco é uma tentativa de impedir que o futuro seja diferente do passado, que seria o fim da miséria secular em nome de um elenco de argumentos fajutos e facilmente desmontáveis pela lógica do desenvolvimento econômico e social da região. Sabe-se que a Reforma Agrária, em alguns redutos políticos, substituiu a palavra envergonhada chamada comunismo. No passado, o igualitarismo tinha nome e sobrenome: marxismo-leninismo, comunismo soviético, bolchevismo, e quetais. Os economistas já gastaram muita tinta criticando o igualitarismo. Não vale a pena repeti-lo. Assim como os enxadeiros nordestinos são a alternativa preferencial do PSOL, e estes precisam estar distantes das águas, na época de Stalin havia o mito da justiça social acobertada por uma diferença abissal de salários.

Independentemente do aspecto brutal da violência contra os direitos humanos, em 1937 os dados estatísticos na Rússia eram:

191319291937
Custo de alimento para 1 semana (rublos)3,405,90 49,60
Índice de preços de alimentos 100172 1449
Salários médios (rublos) 2566 245
Índice de salários reais (por cento) 100 154 68
 

Isso demonstra que, na Rússia, na primeira década da revolução, o nível médio de vida aumentou em 54%. Em 1937 (em pleno expurgo), caiu para 32% em relação a 1913, e 86% em relação a 1929 – 8 anos antes. O próprio Stalin, uma vez consolidado como líder absoluto ao liquidar com a velha-guarda bolchevique, achava que o igualitarismo era uma ideologia pequeno-burguesa, permitindo a consolidação da nova classe tecno-burocrática do regime, o que afetava todos os pilares da sociedade, como indústria, agricultura e exército. Neste último, enquanto um soldado raso ganhava 10 rublos por mês, um tenente ganhava 1.000 rublos, e um coronel 2.400 rublos. No exército britânico, a proporção do salário de um soldado para um oficial era de apenas 1:4. E, na mesma época, no exército americano, era de 1:3, mas no exército soviético era de 1:100.

Poderíamos dispensar estes dados e nos concentrar nos salários brasileiros, tanto da ativa como da Previdência Social, embora já sejam conhecidos da maioria dos brasileiros. Utilizamos os dados da Rússia para demonstrar que regimes que pregam a igualdade são os que mais praticam a desigualdade. Vide os salários da China.

A desigualdade social poderia ser minimizada em termos de legislação salarial e proteção social. O que faz uma nação diminuir sua desigualdade não se relaciona com a limitação da propriedade ou dos bens de terceiros, mas como ela encara a riqueza e a legitima no apoio ao esforço individual e à criação de um ambiente de oportunidades. Portanto, a igualdade é uma questão “ambiental” relacionada à sociedade e sua mentalidade. Somente pela aplicação de homogeneidade de princípios a sociedade pode assegurar seu pleno desenvolvimento. E homogeneidade de princípios parte da existência de igualdade legal, de direitos iguais, de justiça imparcial e de legislação que impeça toda espoliação legal e privilégios, exatamente os nossos principais entraves. Assim, o promotor de justiça aposentado e candidato a presidente da república, Plínio de Arruda Sampaio, deveria se concentrar nestas questões para entender por que uma sociedade tem enxadeiros miseráveis e fazendeiros milionários.

O veneno não está, portanto, na vida privada. O veneno está na vida pública. E o horário político é a sua melhor vitrine.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Dona Benta olhando o trem-bala

Última atualização: 27/07/2010 — by Carlos U. Pozzobon

Em um dos textos do livro ‘Prefácios e Entrevistas’, Monteiro Lobato foi entrevistado pelo jornal ‘O Radical’, em que prefaciou o artigo com o hilariante título de ‘Insultos ao Brasil’, em resposta à crítica de um jornalista do ‘Diário da Noite’, que condenou Lobato por ter falado mal dos trens da Central do Brasil e do tabu separatismo. Reproduzo apenas a argumentação contra o ‘insulto’ de Lobato, em plena Era Vargas, por ter criticado a Central do Brasil:

Em alarmadíssimo artigo no “Diário da Noite” de 13 do corrente alguém denunciou a "Geografia de Dona Benta", publicada no ano passado, como livro deletério, separatista, "sintoma alarmante da desagregação subterrânea do Brasil". E para documentação do alarma citou os trechos de maior gravidade, isto é, os mais insultantes para o Brasil. Nessa obra incrível, diz o articulista, encontramos diálogos como este:

— "Estou também vendo dois trens em marcha, um que vem do Rio e outro que vem de S. Paulo..."
— "Então feche os olhos antes que se choquem. Essa estrada diverte-se todos os dias em brincar de desastre de trens. É federal. . ."

Interpelado sobre esta acusação pelo repórter, Monteiro Lobato respondeu:
— Trata-se de um trecho em que Dona Benta mostra aos meninos as coisas de S. Paulo vistas ao longe, panoramicamente. Os dois trens apontados são da Central. O articulista do "Diário da Noite" acha tremendamente insultante para o Brasil que a velhinha conte aos netos o que essa estrada de ferro realmente é.

Mas haverá neste país quem ignore que a Central ocupa o primeiro lugar entre todas as estradas do mundo em matéria de desastres? Que chegou à maravilha de num mês de não sei que ano conseguir o recorde de 32 desastres em 30 dias? Que a rubrica "Desastre da Central" se tornou permanente nos jornais? Que o povo traduz a E. F. C. B. como Estrada de Ferro Caveira do Burro?

E por que é assim? Resposta: porque é federal, como muito bem explicou Dona Benta. Unicamente por isso. Existe em todos os serviços públicos federais um mal secreto que governo nenhum tem conseguido corrigir. Não há brasileiro que por experiência própria desconheça tal calamidade crônica, velhíssima, irredutível agravada pela República Nova. O emperro burocrático, a falta de racionalização, a lentidão desesperadora do papelório, o descaso absoluto pelo público... Meu Deus! Haverá quem não tenha consciência da calamidade administrativa federal?


As estradas de ferro particulares, como a S. Paulo Railway ou a Companhia Paulista, porque não são federais, mostram-se modelares. A São Paulo Railway só teve um desastre em toda a sua existência — e isso ainda no tempo da Monarquia. Atravessou os 40 anos da República Velha e os seis da República Nova sem um só acidente. O último desastre da Paulista foi há tanto tempo que dele o povo já não guarda memória. Por quê? Porque não são federais. Federalizadas, cairiam no regime da Central, do desastre diário. Logo, a Central é o que é por ser federal.

Essa estrada tem hoje como diretor um dos homens de maior capacidade técnica e boa vontade do Brasil, o coronel Mendonça Lima. Mas pode Mendonça Lima corrigir os males crônicos da Central? Não. Por maiores que sejam os seus esforços, nada conseguirá fazer — porque a estrada é federal. Fosse particular, ele a poria com tanta ordem, eficiência e segurança como a S. Paulo Railway ou a Paulista.

Dona Benta, pois, disse aos seus netos a verdade pura, e uma verdade do conhecimento do mundo inteiro. Mendonça Lima e todos os ex-diretores da Central devem, por experiência própria, estar acordes neste ponto: a impossibilidade de corrigir os defeitos da Central decorre unicamente de ser ela federal. O vício da "federalice" é irredutível, por maior que seja a competência e boa vontade dos diretores de serviços.

Não há nenhum insulto ao Brasil no fato de uma vovó contar aos netos o que é e todos os adultos sabem. Insulto ao Brasil é a Central e todos os outros serviços públicos federais serem o que são. Não será mentindo às crianças que consertaremos as nossas coisas tortas. Sim, consertando as coisas tortas. Insulto ao Brasil é o governo conservar a nossa maior estrada como perpétua detentora do recorde da desastralidade (LOBATO, Monteiro. Prefácios e Entrevistas: Ed. Brasiliense, 1951, p. 249-251).

Uma análise mais detalhada do panorama ferroviário brasileiro vemos promessas, planos grandiosos, projetos magníficos, mas ferrovias que é bom, só no acanhado andar do jabuti.


Quando visitamos o site da Valec (empresa pública ligada à ANTT), ficamos sabendo por uma de suas releases a vinda ao Brasil de uma autoridade chinesa para o lançamento das obras de um trecho de construção da ferrovia norte-sul em Tocantins. Disse Lu Chunfang que apenas em 2009 estavam previstos 5.600 km de linhas ferroviárias novas na China. Note bem: em apenas um ano! Em 2010, a China seria a segunda potência ferroviária do mundo com mais de 100 mil km de ferrovias. (http://www.valec.gov.br/clipping2009/20090912-1.htm). E o que aconteceu no Brasil?

Bem, “em maio de 2007, o presidente Lula inaugurou o trecho Aguiarnópolis-Araguaína, no Tocantins, com 146 km de extensão. Em dezembro de 2008, Lula inaugurou mais 94 km da Norte-Sul, relativos ao trecho entre Araguaína e Colinas do Tocantins. Os 132 da Ferrovia, entre Colinas e Guaraí também já estão prontos. Para o trecho de 150 km entre Guaraí e o pátio de Palmas/Porto Nacional, a previsão de conclusão das obras é maio de 2010”... (http://www.valec.gov.br/situacao.htm).

E agora, esse governo, em ritmo de jabuti manco anunciou um espetacular plano de investimentos de 57,7 bilhões de reais em ferrovias entre 2010 e 2013. Alguém acredita nesse conto da carochinha?

Mas a maior perplexidade é a do trem-bala ligando Campinas-SP-Rio. O governo falou em investir 33 bilhões de reais em uma linha que será explorada por meia-concessão. O que significa isso? O governo entra com o dinheiro, o consórcio constroi e se retira, e o concessionário (uma associação forçada entre governo e capitais privados) explora e a mantém pelo prazo do contrato.

A hipótese do trem-bala se autofinanciar está afastada, por cálculo simples. O investimento de 30 bilhões exigiria uma rentabilidade mínima de 1% ao mês: 0,5% para pagar juros (6% ao ano) e 0,5% para amortizar o capital emprestado e as despesas operacionais. Isto somaria 300 milhões/mês. Cobrando a tarifa de 200 reais por passageiro significa transportar 1,5 milhão de pessoas /mês. Obviamente, não existem essas pessoas e, portanto, o governo teria que entrar com dinheiro sem retorno.


Assim, a exploração deverá ser feita por empresa especialmente criada para a ocasião, que poderá ser um consórcio de empreiteiras. Pelo que se deduz do plano, dos 33 bilhões, o governo entraria com uns 20 bi sem retorno, e os vencedores da licitação com o resto, sabendo-se de antemão que o BNDES vai estar disponível e que os bancos europeus financiam a compra de equipamentos, se – bem entendido – os equipamentos forem europeus, não faltando os chineses na corrida para vender seu know-how na contrapartida de emprestar seu dinheiro.

Então tudo se passa como no velho esquema. As construtoras se reunem, calculam o valor da infraestrutura e pimba, multiplicam por três. Ganham 2 terços e repassam a “conta” para a operadora estatal que também vai dar calote, já que a despesa é irrecuperável e temos a história estatal brasileira como prova dos “direitos adquiridos” em calotes. Eles pegam o dinheiro do governo e, com o lucro astronômico, pagam os financiamentos internacionais da maquinaria ferroviária e ainda sobra um bocado. E como o governo quer vencedor da licitação o que apresentar a menor tarifa, no teto de R$ 0,49 por km (o que dá aproximadamente 200 reais Sampa-Rio), é possível que o negócio fique a preço de passagem de ônibus-leito no mesmo trajeto.

Mas tem mais: como o governo vai impor um limite de desembolso no projeto se este sequer existe? Quantas pontes serão construídas, quantos viadutos, quantos túneis, quantos ramais, quantos pátios de manobras, que tipo de sinalização e vigilância eletrônica será implantado, como será o isolamento da linha para permitir segurança em alta velocidade? Como garantir a segurança para alta velocidade em um país onde a propriedade pública é depredada sem cerimônia? Bem, para que se possa riscar todos os itens que compõem um projeto, ele tem que ser fabulosamente lucrativo, não é mesmo? Com a mão na grana todo o resto se arruma, segundo o pensamento político tão zelosamente consagrado nas esferas governamentais.

Será que dá para acreditar? Não será uma mise-en-scène só para produzir resultados eleitorais? Como se pode acreditar em um governo que quase nada fez pelas ferrovias em 8 anos de mandato e que agora, alucinadamente, no apagar das luzes, puxa da gaveta ferrovias que vão de Ilhéus a Rondônia, do Rio de Janeiro ao Acre, de Belém a São Paulo? (http://www.valec.gov.br)


Será que o trem-bala é uma prioridade nacional? Considerando que os fretes rodoviários do Centro-Oeste estão custando 40% do valor da soja comercializada, será que Brasília, plantada em pleno cerrado, não se dá conta do que deve ser feito debaixo do seu nariz?

Por último, aparece um componente inserido no contexto que seria estranho se não fosse cômico. A viabilização da concessão será feita por uma nova empresa estatal que já veio até com o nome: ETAV (Empresa de Transportes de Alta Velocidade). A ETAV será uma Petrobras do trem-bala. O governo detém 33% do capital votante já entrando com 3,4 bi no ato da fundação. Como se vê, uma oportunidade para aparecer outro Daniel Dantas com uns trocados e sair com uns milhões.

Mas qual a razão de uma empresa mista, se a exploração poderia ser feita por uma empresa privada, se já existe a Valec para a regulamentação? Ora, mas então o contribuinte não enxerga? Será que não desconfiou ainda? Se um consórcio constroi, fornecedores implantam, a Valec regulamenta, o leitor não percebeu que falta alguma coisa que só uma estatal sabe fazer?

Quem é que vai definir o cardápio do carro-restaurante, quem é que vai escolher o uniforme dos funcionários, quem é que vai selecionar o tipo de cortinas, o revestimento dos assentos, a decoração das estações e tantas coisas mais? Ora, convenhamos, só mesmo uma empresa estatal para resolver essas complexidades.

E a massa de cabos eleitorais esfrega as mãos de faceira com os novos empregos públicos em plena vertigem eleitoral. Vem aí mais uma Estrada de Ferro Caveira de Burro, agora com promessa de alta velocidade. E Dona Benta ressuscitará das trevas para dizer aos netinhos o supremo insulto: “fechem os olhos, esta estrada diverte-se todos os dias em brincar de desastres de trem.” Agora em “alta-velocidade”, podemos acrescentar.

No final do artigo ‘Insultos ao Brasil’, depois de tantas argumentações sobre a doença brasileira, Lobato arremata:

"Temos deveres para com o futuro. Já que não soubemos ou não pudemos consertar as coisas tortas herdadas, tenhamos ao menos a hombridade de não iludir nossos filhos. ‘Falhamos – deve ser a nossa linguagem. Não pudemos corrigir os erros vindos de trás. Não pudemos conseguir um bom governo. Não pudemos endireitar a Central – nem o Departamento Nacional de Produção Mineral [Nota: por ter enterrado o projeto de extração de petróleo privado nos anos 30, como enterramos agora o pré-sal]. Mas vocês, que vão constituir o Brasil de amanhã, sabem disso, enfronhem-se desde já das mazelas vigentes; e quando virarem adultos tratem de fazer o que a nós não foi possível. Tratem de consertar o Brasil, pois do contrário sofrerão ainda mais do que nós. Males que se agravam progressivamente tornam-se cada vez mais dolorosos.

O doente que admite estar doente e vai ao médico, pode sarar. Mas o doente que nega, que esconde, que enfeita a sua doença, esse não escapa. Tenhamos a nobre coragem de admitir nossas doenças – e estaremos a meio caminho da cura" (p. 257).

Sossega Lobato: a praga da estatização está de volta e não tem cura. É a maior doença do país e vai levar ao desperdício a carona que pegamos no trem-bala do fabuloso crescimento asiático. O Estado ficará de um tamanho tal que vai engolir todos os recursos da Nação. Depois disso, vêm a volta da inflação e dos déficits públicos gigantes. Não se sabe em quanto tempo nem em quantos governos. Tudo depende do cronograma final entre aquilo que o governo mente que vai fazer e aquilo que realmente faz de errado. Mas certamente será o legado da Era Lula. O modelo político garante a supremacia daquele partido que comete os mesmos erros do passado e depois fala que “somos o país do futuro”.

Segundo o OESP (25/7/2010), o investimento previsto para o trem-bala daria para construir 300 km de metrô. Bem, metrô se paga, descongestiona o trânsito de veículos, agiliza e beneficia a produtividade do cidadão. É o que deveria ter São Paulo nos dias atuais e não os meros 62,3 km existentes. Mas isso é outra história.

Conforme essa mesma reportagem, os arautos do trem-bala prometem uma viagem de São Paulo ao Rio de Janeiro em 1h35min. Então tá: quer dizer que um funcionário (destes que recebem generosamente transportes subsidiados, bem-entendido) que estiver trabalhando nas imediações da Estação da Luz, em SP, poderá residir no Rio de Janeiro e chegar em casa antes daquele seu colega que mora no Morumbi, em Interlagos ou Alphaville? Aí já não dá para esquecer o mesmo Lobato que dizia que o Brasil deveria importar inteligência. Pelo jeito, de burros não temos só a caveira.

A ingenuidade da oposição

Carlos U Pozzobon

Sendo a liberdade uma questão de grau, o enorme perigo para aqueles a quem a experiência não imunizou é a suavidade da transição que leva à servidão” (KOESTLER, Arthur. O Iogue e o Comissário. Ed. Instituto Progresso Editorial, 1947, pg. 164).


Em 1946 ninguém acreditava que Getúlio se elegeria senador na Constituinte do governo Dutra, exatamente 3 meses depois de ter sido deposto pelos militares. Naquela época, as eleições para o senado não eram federalizadas como agora, e Getúlio foi eleito até mesmo com os votos dos paulistas. Novamente em 1950, com alianças entre PSD, PTB, sindicatos e comunistas, Getúlio voltou ao Catete com grande diferença sobre Eduardo Gomes, o então candidato da oposição.

Em todo o Brasil as elites intelectuais se perguntavam: como é possível que o povo vote em seu próprio carrasco? Agora o Brasil oposicionista repete perplexo a mesma pergunta: como é possível Dilma ter tantos votos se é seguidora de um governo fraco, conivente, aliado às piores oligarquias políticas, com uma equipe incapaz de deter a avalanche de gastos do setor público e, ao mesmo tempo, comprometida com escândalos de corrupção?

O fator Getúlio deve ser analisado detidamente porque não se enquadra dentro da lógica do julgamento pelo modelo de gestão. Ora, o povo tem 2 medidas: ou julga pelas propostas (quando o partido nunca esteve no governo) ou julga pela gestão. Mas como explicar que uma má gestão gere tantos votos a favor? Eis aí onde entra a ingenuidade da oposição.

Os analistas políticos, os marqueteiros de ocasião e os jornalistas de plantão desconhecem um fato elementar em toda a eleição: existe um voto emocional que não é trabalhável pela lógica dos argumentos porque não se enquadra dentro da razão humana. Evidentemente que as emoções estão dos dois lados do eleitorado: tanto naqueles que repudiam visceralmente o PT como também naqueles que seguem seus candidatos em qualquer circunstância.

Uma gestão fracassada do ponto de vista do desenvolvimento econômico e social (como foi a de Getúlio) não quer dizer que não mantenha um enorme eleitorado disposto a votar, mesmo que as condições de gestão tenham sido muito piores do que efetivamente foram. A causa disso está na dependência dos “explorados” de seus “exploradores,” na velha equação de que “o Estado degrada para depois salvar”. Esta lei é uma especialidade das seculares oligarquias nordestinas, que sabem mais do que nós como uma boa esmola comove os corações. E não é muito difícil de controlar vastos currais eleitorais quando se tem uma rede de organizações civis que foram tornadas agentes do processo eleitoral, funcionando como linhas auxiliares dos partidos. Com isso, estou querendo dizer que enquanto a aliança PSDB, DEM, PTB e PPS dispõe apenas da organização partidária para uma eleição, o PT tem aliados que não fazem parte dos partidos políticos. Eis aí onde reside sua força.


Se não estou enganado, o PT não é um partido democrático no sentido convencional do pluralismo político de uma democracia representativa baseada na alternância, mas um partido de inspiração revolucionária cujo objetivo é tomar o poder sem luta armada, com uma progressão paulatina de mudanças que lhe garantam a remoção de obstáculos sociais em todos os campos, aprofundando sua dominação com os compromissos garantidos por privilégios que a oligarquia estatal sempre distribuiu aos seus apaniguados. Em última análise, sua estratégia é capturar a iniciativa oligárquica do nosso perpétuo estatismo e remover todos os obstáculos à garantia do poder. Este caminho está mais adiantado na Venezuela e nada nos impede de usá-lo como modelo, até porque ninguém no PT critica Hugo Chaves, o que nos permite concluir que — por um efeito Orloff — o Brasil será amanhã o que a Venezuela é hoje: um país em franca decomposição de sua base produtiva e de suas liberdades civis.

Esta não é uma estratégia clara com objetivos definidos – como pensam muitos intelectuais da oposição. É, antes de tudo, um conjunto de táticas que surge empiricamente no processo político e que vai se aprofundando à medida que aumenta a resistência. Às vezes recua, para voltar depois com mais força. Às vezes consegue, outras vezes muda de direção e volta a atacar no mesmo ponto: esta é a nova face do eleitoralismo brasileiro, cujas bases são uma enorme ramificação de organizações sociais dependentes do dinheiro público e comprometidas com seu voto.

Não é à toa que a reforma agrária já não engana mais ninguém: apenas se mantém a pressão dos sem-terra para drenar os recursos públicos necessários à agitação social – fator indispensável na tática revolucionária que visa manter os ânimos aguçados pelo discurso contra o inimigo. De seus resultados não sai um pé de feijão nem uma roça de mandioca, mas o açodamento aos inimigos para a necessária turbulência ideológica dos espíritos na comunhão com a “causa”.

Será que a oposição que prega a transparência não tem contra si um contingente eleitoral não desprezível de um modelo social que sobrevive na opacidade? A oposição não desconfia que se afinal a causa social do PT é um blefe, se na verdade todo esse esforço de agitação e conscientização nada mais é do que a vitrine por onde espertalhões saqueiam a República, o governo não está em assentimento com a banda podre que sempre existiu no país e que é poderosíssima eleitoralmente? Será que compartilham os mesmos sorrisos, os mesmos tapinhas e as mesmas lisuras que concorrem para uma popularidade indisfarçável de seus protagonistas?


Será que a oposição sabe que um partido que elege um presidente, que cria as condições para que nada em sua órbita possa ser responsabilizado devido à sua ignorância funcional, não arregimenta toda a maré negra de corrupção que assola o país?

Mas isso não é tudo: a tática do PT é muito mais visível na contra-marcha do processo de modernização do que no avanço dos seus movimentos sociais mercenários. Refiro-me ao desmonte dos setores de energia e telecomunicações.

Em telecom, a reestatização começa com a NewTelebras. Se tudo der certo, dentro de alguns anos será um MST na banda larga. As barracas e os acampamentos dos novos funcionários da NewTelebras serão feitos dentro do latifúndio das operadoras de telefonia e não faltarão foices e incêndios para demolir a ordem existente com o dumping e a guerra de preços de um governo que não tem a mínima consideração com as práticas da livre concorrência. A fusão OI-BrT já foi um escândalo que a oposição deixou passar sem nem mesmo resmungar escandalizada. O BNDES, banco de investimentos para o desenvolvimento nacional, foi o financiador da fusão OI-BrT, numa clara ilegalidade com os objetivos de um banco de fomento, seguida por outra ilegalidade usada pelo governo para mudar a lei e permitir que a fusão se realizasse, e o fez por decreto.

No setor de energia, a grande transformação ocorreu com o petróleo. A mudança do marco regulatório – do sistema de concessão para o sistema de partilha – foi uma descoberta empírica das mais importantes para o PT, foi como criar um mecanismo de financiamento eleitoreiro que se mantenha na opacidade das cuecas e dos malotes. A Petrobras tem sido a maior financiadora de artistas, intelectuais, atores, cineastas, festas juninas, festivais, encontros literários, carnaval, e muito mais. Sempre foi. Com o novo marco regulatório, a troca do sistema de concessão para o de partilha vai ser o equivalente à criação de uma fábrica de cuecas especialmente preparada para transporte de dinheiro de patrocínios.


Pelo sistema de concessão a empresa exploradora paga desde o primeiro barril extraído. Uma pequena aritmética é suficiente para calcular o quanto o Tesouro embolsaria. Pelo sistema de partilha o dinheiro só vai aparecer depois de descontados todos os custos em barris equivalentes. Aí vai entrar a janela dos patrocínios para o partido no Poder e do eleitoralismo descarado. A diferença entre o PT e os governos anteriores na direção da Petrobras era a ausência de partidarização dos patrocínios. Agora não. O próprio partido controla o caixa (OESP 24/5/2009 pg. A4) e escolhe os beneficiados no exame minucioso da ficha política. Adivinhe em quem votam as pessoas físicas beneficiadas pela Petrobras?

Em poucos poços perfurados não vão faltar verbas para prefeitos fazer festas, e obviamente para os palanques. A oposição faz de conta que não vê, para não abrir uma frente de discussão que se espalhe pelo país no momento mais oportuno: o das eleições. Isto já é um sinal preocupante de que vai ficar acuada e na defensiva.

A diferença entre o PT e os partidos da oposição pode ser medida no comportamento de seus lideres. Quando um governo estadual ou uma prefeitura não petista entrega um conjunto habitacional para os moradores, quem está entregando é sempre o governo e não o partido no Poder. Quando o governo federal entrega uma obra quem o faz não é o governo federal, mas o PT. Isto significa que a função política do neossocialismo petista é a de representar o Estado e não o governo representar o Estado. Muito papel foi gasto para analisar a confusão entre Partido e Estado praticada pelo PT. Insisto que a confusão não só é deliberada, como articulada para que o Partido se prolifere indefinidamente ocupando cada vez mais o Estado para seus fins ideológicos. E, aparelhado pelos recursos do Estado, esteja em condições de mobilizar todas as suas alas “civis” para o enfrentamento caso perca as eleições.

Atemorizada com o crescimento dos índices de intenção de votos da candidata do governo, a oposição não é capaz de perceber que a democracia plena – que nunca existiu no Brasil a menos deste atual arremedo lamentável – mudou de nome e agora se chama subornocracia. A oposição sequer suspeita de que o processo posto em marcha não dependerá mais da falta de recursos. Doravante o processo político passará pela cartilha do chavismo: prefeito que for contra vai para o paredão das calúnias, depois para a intimidação e por fim para o ostracismo político.


Um dos livros mais importantes para se meditar o momento atual – e por isso mesmo totalmente ignorado – foi publicado em 1947 no Brasil e escrito por Arthur KOESTLER anos antes, com o título ‘O Iogue e o Comissário’ (Ed. Instituto Progresso Editorial). Trata-se de um conjunto de ensaios escritos para jornais ingleses e americanos a respeito de suas experiências na Rússia de Stalin. KOESTLER, então um arrependido de seus arroubos juvenis e de seu entusiasmo pelo socialismo soviético, estudou psicologia para tentar desenvolver uma teoria a respeito do apelo emocional do bolchevismo. Para ele era natural que pessoas com interesses econômicos bem assentados na nova ordem se enganassem. Mas, pessoas distantes e sem qualquer vínculo com o movimento comunista, pensarem que Stalin estava fazendo uma “transformação social e humana” na Rússia era algo que não tinha sentido. Ele percebeu (não sei se foi o primeiro, mas certamente um dos primeiros) que a força do comunismo vinha do sequestro da fé e, portanto, era uma ideologia cujo componente emocional se misturava com a redenção, obtida com uma carga emocional panfletária que prometia a salvação, misturando a “inevitabilidade histórica” do Manifesto Comunista com as mais duras críticas contra as desigualdades sociais e os males do capitalismo. Mas para que se assentasse nas consciências era necessária uma propaganda constante para neutralização da crítica contrária.

Um dos meios de neutralizar um país embasbacado com o apelo emocional típico de nossa cultura televisiva e de um povo incapaz de reflexão racional seria a oposição se valer do mesmo emocionalismo e dar o troco na altura — por exemplo, se tivesse convidado Pelé para vice-presidente de José Serra. Em pleno ano de Copa, e com a perspectiva de que o principal foco dos próximos 4 anos seja o envolvimento do Brasil com a Copa do Mundo de 2014, Pelé atrairia para si todas as atenções e simpatias porque sempre foi uma figura com a identidade popular necessária para desmontar a insensatez ideológica, e poderia ocupar um discurso de dissenso em relação à política convencional, animando a população e quebrando a hipótese do continuísmo petista. Mas isso a oposição foi incapaz de fazer, e a escolha de Índio da Costa para vice de Serra significa a prioridade dos acordos partidários sobre o interesse eleitoral mais amplo e necessário: interromper o ciclo petista.


Espero estar redondamente enganado, mas a julgar pela atmosfera política atual, a oposição ainda pensa em seus próprios nomes num país em que a política — não por acaso — foi desmoralizada e por isso caminha célere para a derrota não só neste pleito, mas em todos os seguintes, até que o colapso econômico venha bater na casa do brasileiro com a inflação em alta, como nos velhos tempos do governo Sarney. Aí então a oposição será convidada a arrumar a casa por exaustão de desperdício dos recursos e pela humilhação causada pelos escândalos, e uma nova constituinte se estabelecerá para tratar as feridas da insanidade populista. É o eterno ciclo de um país que não conhece a si mesmo.

Esta não é uma afirmação gratuita. Toda a política petista não passa de uma grande implementação do desperdício, porque baseia suas propostas no emocionalismo dos mitos e não no racionalismo dos resultados. Eles não se dão conta — ou procuram enganar a todos — de que o nosso crescimento econômico na primeira década do século XXI se deve às reformas que foram feitas na década anterior, permitindo ajustes fiscais, e ao fato de estarmos tracionados pela Ásia como produtores de commodities. Portanto, um ciclo econômico que não dependeu do partido no Poder, mas dos alicerces anteriores e da conjuntura internacional favorável, aliada à extraordinária produtividade das novas tecnologias e das conquistas científicas nas áreas de produção brasileira. Não há nada de positivo nisso tudo que provenha do governo. Ao contrário, as propostas petistas que se leem nos sites de apoio ao governo indicam que tudo está sendo feito para mergulharmos em uma crise econômica assim que a demanda chinesa começar a ceder ou que por qualquer razão o ciclo de exportações diminuir. Aí então será mais um longo período de oportunidades perdidas. Mas o PT não ficará só. Ao longo do século XX o Brasil perdeu oportunidades em quase todos os governos. É a nossa sina e deve ser creditada também à estupidez do sistema político. Afinal, o PT vai apenas ficar na história como a continuidade daqueles a quem tanto odiava. Como dizia KOESTLER: “talvez a civilização atual não esteja morrendo, mas tão somente dormindo”. Espero que a brasileira acorde desse pesadelo antes de outubro.